segunda-feira, 17 de agosto de 2020

À Faca

O dom da comunicação e o seu poder inerente, cai por terra quando adicionamos à equação uma boa porção de drogas e uma língua impronunciável. Há momentos na vida em que bradamos aos céus para ser bem compreendidos: quando pedimos o nosso hambúrguer sem pickles, quando explicamos que não somos sado-masoquistas e quando há alguém de bata, luvas e bisturi na mão prontos a iniciar uma caça ao tesouro no nosso abdómen.

Esta semana fui submetida a uma pequena cirurgia. Não ganhei uns seios novos e reluzentes, nem tão pouco mais ou menos me sugaram os entrefolhos que pós quarentena compraram um lote no meu ventre. Uma inutilidade de cirurgia, portanto. Encheram-me que nem um peixe balão, brincaram à operação a ver se o meu nariz ficava vermelho ao tocarem nas bordas e já está. Agora para alcançar o chão tenho de deixar que a gravidade faça o seu trabalho e para sentar-me é um processo em três passos, que envolve ajuda do público, um sistema de roldanas e música de fundo motivacional.

Pobre de mim a sucumbir perante tamanha dor. Não. Verdade seja dita, estou fresca que nem uma alface. Não obstante, foi a minha primeira cirurgia. A minha primeira oportunidade para ser amada incondicionalmente, mimada e que ante um qualquer guincho veja ser projectada na minha direcção três almofadas, um boião de gelado e canções de embalar. Isto não vai durar muito, há que aproveitar.

A cirurgia em si era algo pequeno, não obstante ser operada numa altura em que não se pode entrar acompanhada num hospital, onde não falamos a língua e onde há canais suficientes para ocultar corpos de operações a emigrantes que não correram bem, pois, dá que pensar. Com pesar confesso que nem motivos para trauma me deram, até a gelado de pêra tive direito (sou mulher que se contenta com pouco) e ainda não deram de si nenhuns efeitos secundários. Porém, sou apologista que por cada vez que nos anestesiam, devíamos acordar com alguma melhora estética. Já que andam para lá a escarafunchar, seria como uma promoção dois por um.

Fica aqui, então, uma sugestão amiga: caros médicos, sejam uns porreiros a oferecer implantes e a vossa popularidade vai subir desmedidamente. Pensem numa sociedade hedónica marcada por reciprocidade, vocês dão o que podem e o universo vai-vos pagar de volta. Hoje um implante mamário à dona Cremilda, amanhã ela põe uma carcaça grátis no vosso saco quando forem pelo pão. E o Universo mantêm equilíbrio neste tu cá tu lá de bens.


quinta-feira, 23 de julho de 2020

Sinais

“Se deus te assinalou, algum defeito te encontrou”

A frase motivacional que moldou a minha existência. Soa a um mero trocadilho amoroso quando proferido com olhos carinhosos e num tom de voz terno de uma avó alentejana. Com 5 anos era um pinhão com olhos que gostava de tudo o que rimava, sem desejo de indagar o porquê detrás de deus ter embicado comigo e muito menos, sendo o criador, decidir usar-me como rascunho.

Divindades à parte, culpo inteiramente os meus progenitores por tamanha incapacidade de decidirem uma cor de pele e se terem centrado nela, durante o meu fabrico. Está para nascer o dia em que a minha mãe se decida entre uma cor e não compre toda uma colecção, em todos os tons existentes (sejam camisolas ou tinta de parede). Como ter um filho de cada cor seria uma carga de trabalho, cá estou eu, este dálmata que não sabe truques. Dirão vocês, terá leves sardas colocadas harmoniosamente por baixo dos olhos, exagerada! Não. Sou aquele jogo de juntar os pontos, sem interesse algum, não apropriado para os vossos filhos, do qual vocês vão desistir antes de chegar ao sinal que tenho debaixo da unha.

Anos a ponderar em que significariam tantos sinais. Tenho consciência da minha incapacidade de fechar casacos de fecho-éclair sem ficar sua prisioneira. Não sei respirar (o pior super-poder alguma vez visto), falo depressa para conseguir gerir informação entre "arfanços", senão morro e terei direito à lápide mais depressiva de sempre: “morreu porque se esqueceu de inspirar”. Não achei o filme Parasite a última coca-cola do deserto. Consigo pensar em mais uns quantos, mas não me dá para tanto.

Concluo deste modo, que nem todos os trocadilhos e frases feitas têm sentido. Já devia ter suspeitado, afinal de contas a minha avó também repetia incessantemente, “7 e 7 são 14, com mais 7, 21. Tenho 7 namorados e não gosto de nenhum” e a senhora tinha uma agenda cheia, não tinha cá tempo para tamanha rebaldaria.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Saudade

“Ó gente da minha terra

Agora é que eu percebi

Esta tristeza que trago

Foi de vós que recebi”

Eu sei que está estabelecido na constituição da república portuguesa que um indivíduo depois de registado em território nacional tem de se tornar alguém emocionalmente perturbado e que defina na perfeição a palavra “saudade”. Eu fui registada na margem sul do Tejo e isso pode ter acarretado alguma interferência no processo. Fiz as malas e entre abraços, lágrimas e chamadas de atenção aleatórias, como os cuidados a ter ao congelar frango, ninguém me explicou qual seria a altura certa para começar a ter saudades.

Haverá um momento, em que ouvir fado abraçada a uma estátua de plástico luminosa de Fátima, enquanto faço um altar a um pastel de nata será, certamente, apropriado. Já lá vão 6 anos desde que sai de Portugal e tenho saudades constantes, uma moinha chata que está sempre lá, aquela vontade de receber o colo de mãe depois de um dia mau e de ir comer àquele restaurante que é o teu favorito desde os 5 anos de idade. Não obstante, ainda não tive uma recaída dramática.

Eu não gosto de surpresas. Da mesma maneira que não gostaria de ter um ataque de cólicas a meio de uma entrevista de trabalho, também não gosto da ideia de ser atingida pelo conceito de saudade em todo o seu esplendor, quando estiver num momento de loucura íntima. Transitando, fugazmente, de um encontro romântico a um momento de terapia em que estarei enrolada em mantas com rímel e baba a escorrer queixo abaixo, enquanto o Juan Carlos tenta sair pela janela sem partir o pescoço.

Sou uma mulher adulta e independente! Que pode desmoronar entre lágrimas e soluços, em posição fetal, encostada a um canto da sala, abraçada à fatia de pão alentejano restante, enfiada na mala durante a última visita. A essência está, em que ninguém presencie tal momento decrépito. Tirando o meu vizinho, que já se queixa que eu ando com demasiada força, se um dia eu choro ele chama os bombeiros.

Revelar a existência de saudade é, garantidamente, ter num par de horas a nossa mãe à porta de pantufas (e máscara), para nos levar de volta para o nosso país (ao colo). Se raramente nos expressamos, a probabilidades é de nos rotularem de insensíveis e adoptarem um labrador para colmatar a nossa ausência (eu fui substituída por dois gatos).

O meu nível de comunicação actual parece estar a manter o padrão necessário para que não mudem a fechadura de casa sem me avisar. Para os interessados no ritual, passa por proclamar palavras aleatórias num tom arrastado e melancólico, mescladas com sons imperceptíveis (se alguma vez foram à matança do porco da aldeia, sigam a nota do porco), que passam rapidamente da temática emocional à física quântica. Podem declarar-vos doentes mentais, mas não duvidarão do vosso amor.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Chernobyl Hormonal

A mulher é um ser abençoado, que mensalmente é relembrado da sorte da reprodução da qual é portadora, através de um espectáculo visceral gráfico, com efeitos sonoros. Não sei quanto a vocês, mas eu seria capaz de me lembrar de tal dádiva com uma notificação no telemóvel. O efeito hormonal que é produzido no corpo feminino é como uma pequena réplica do Chernobyl. O impacto real pode ser na sua fábrica interna, mas toda a população que a rodeia vai sofrer de efeitos colaterais. Um mês aprazível é aquele em que a explosão é contida, apenas derretendo o nosso discernimento e amor próprio, e em que o vosso parceiro foi rápido o suficiente para sair de cena, conduzir para o país vizinho e mudar de nome.

São pantanosos os caminhos que os nossos parceiros têm de percorrer uma vez ao mês. Digam ou não digam, estão incorrectos. Façam ou não façam, fazem mal. Perguntar, nem é uma opção. A única maneira de sobreviver é ser portador de um kit de primeiros auxílios com chocolates, um filme de terror e um romance (a coisa pode pender para qualquer um dos lados) e calmantes (para ambos). Para vos ajudar a visualizar a problemática, aconselho-vos a ver o filme Inside Out da Pixar, em ácidos, nus, no parapeito do edifício onde trabalham.

O descanso de guerreiro vem com a idade, seria de esperar. Mas alguém decidiu inventar a menopausa, onde as quatro estações do ano são vividamente sentidas por minuto e as emoções que estavam contidas a uma vez por mês, são constantes e vêm de machete em punho. Eu não quero brincar mais a isto, será que ainda vou a tempo de trocar a minha genitália por uma daquelas coisas penduradas que para ai andam?

terça-feira, 16 de junho de 2020

Voo Low Cost

Bem-vindos a bordo deste voo da Satã Airlines, com destino à Buraca. Coloquem cuidadosamente os vossos pertences no compartimento superior, para garantir que vos cai alguma coisa em cima se não ouvirem os meus conselhos e decidirem levantar-se a meio da turbulência para tirar o agasalho da mala, apesar de estarem a suar do bigode. Sim, haverá turbulência constante, estão a voar na carcaça de uma carrinha de caixa aberta que servia para o transporte de cabras, vai contra todos os elementos da física estarem a voar e vão sentir cada gaivota com que chocarmos como se fosse uma bomba nuclear.

Não há cintos de segurança, nem a luz de proibido fumar. Acreditamos que são capazes de se lembrar que é proibido fumar durante a duração do voo sem ter um boneco iluminado que vos recorda o tempo inteiro. Em caso de queda de pressão na cabine, pois... vocês caem também. Dispomos de almofadas de serapilheira e mantas daquela lã que as vossas avós usavam para as vossas camisolas de inverno, que vos criava urticaria severa, mas era isso ou passar frio e levar um enxerto de porrada da senhora. Durante o voo serviremos para vosso deleite, xarope de cenoura, repolho cru e palavras de conforto por alguém certificado em mau trato psicológico. No nosso serviço de entretenimento poderão desfrutar de uma playlist de gritos, jogos em que nunca ganham e uma oferta variada de vídeos dos vossos ex a enumerarem os motivos pelos quais vos deixaram (produção de luxo da Disney). A minha colega Cátia Denise irá recolher doações para a sua prima, se não doarem ela ver-se-á obrigada a cortar as unhas apoiando os pés no vosso colo.

Esperamos que desfrutem tanto deste voo, como o proprietário da casa onde este avião vai aterrar. Não se esqueçam que não estamos disponíveis para ajudar, responder às vossas perguntas e se estiverem a morrer engasgados com o repolho, por favor, respeitem os outros passageiros e façam-no em silêncio (se for viável fechar-se no saco negro para defuntos que encontra debaixo do seu assento enquanto se engasga, agradecemos). E, por último, se aplaudirem ao aterrar, vão ser vítimas de combustão espontânea.

Desfrutem e esperamos voltar a voar convosco em breve.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Jóia da Coroa

Almas puras, sem conhecimento de maldade, corrompidas por uma criança de índole maquiavélica. Dar nomes às coisas faz delas reais. Hoje em dia intitula-se de bullying a tudo e este uso em demasia faz com que as verdadeiras vítimas não sejam ouvidas. Uma criança usa o escorrega ao contrário e enterra a cabeça na lama, um petiz grita do baloiço: “otário”. Pumbas bullying! Não! O petiz à distância é um observador sagaz, tem um vocabulário de louvar para alguém de 6 anos e apenas constata um facto.

Há pessoas que realmente sofrem de bullying na sua infância ou adolescência, mas sejamos realistas, muitas vezes nem sabemos destes casos até ser demasiado tarde. A sua gravidade faz com que os jovens tendam a calar-se. Esta crónica (para parecer que tem classe), é dedicada a todos os pais excessivamente protectores, que se esquecem, que uma criança aprender a defender-se faz parte do seu desenvolvimento enquanto pessoa. Se protegemos sempre uma criança como se fosse uma jóia da coroa, vai achar-se a última coca-cola do deserto e, quando for grande, mais lhe vale que tenha uma boa herança e possa ficar em casa a fazer comentários de ódio no Youtube, porque não estará pronta para o mundo cão que há lá fora.

As vossas crianças podem ser lindas, ter os olhos do pai e o bigode da tia, mas não são especiais. Temos de proteger a nossa descendência de maneira inteligente, ensinar-lhes como viver em sociedade, defender-se e proteger-se. Criar um ser humano forte e não o tratar como o Dumbo (a menos que voe com as orelhas, nesse caso, acho bem que façam algum dinheiro da criança).

Vinde comigo fazer uma visita a um passado não muito distante (gosto de me convencer disso). De pequena, como a muitas crianças, chamaram-me nomes e havia um energúmeno mal-educado que me batia (hoje o pobre Luís Miguel ainda deve viver na cave da sua rica mãezinha e ser o orgulhoso proprietário de um dente na boca). Muitas foram as vezes que cheguei a casa a chorar. Com a orientação dos meus pais, aprendi a não ligar aos nomes e ignorar, pois sabia o meu valor e responder era alimentar esta prática. Até que se cansaram e as ofensas gratuitas acabaram. Funcionou! Mas o Luís Miguel, raio do puto levado da breca não desistia de me marcar com nódoas negras. A minha mãe falou com a professora, falou com a mãe da criatura, um dia parou o carro à frente do dito e mandou-lhe três berros (momento mais emocionante da minha vida!), mas o neurónio não lhe dava para tanto e o Luís Miguel não percebeu. Então um dia a minha mãe deu-me o aval de me defender e de se ele me batesse, eu tinha a sua bênção para lhe responder na mesma moeda. Que dia tão bonito esse. Ponhamos as coisas assim: foi o fim de uma era. Descobri que era bruta que nem uma porta.

A minha geração foi alimentada pela violência e estamos todos frescos que nem alfaces! As músicas de pátio tratavam de maltratar gatos com paus e a mítica música “Dominó”, falava de uma rua que cheirava a sangue porque alguém se tinha matado. [Já que falamos do assunto, se alguém souber por que raio ficávamos no “coito” para estar a salvo a jogar à apanhada, agradecia o esclarecimento]. Quando estava no ensino básico apareceram os Happy Tree Friends, que, para quem não sabe, eram animais amorosos que explodiam, lhes saltavam olhos e morriam de diversas formas sombrias e detalhadamente gráficas. Isto (não) ajudou (em nada) a vermos a morte como algo natural e divertido.

A realidade é que, actualmente, lidamos com as crianças como pequenas bolas de algodão, que se podem sujar se as pousamos em algum lado. Temos de criar futuras gerações fortes, porque os millennials são todos carne para canhão se há um apocalipse zombie. A geração dos nossos avós viu de tudo! Há alguns um bocado afanados das ideias, mas no geral são pessoas normais. Não tenham medo de expor as vossas crianças a este mundo fascinante.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

2020

2020 tem sido o equivalente a um asteróide prestes a colidir com a Terra a qualquer momento, transmitido em directo em todos os meios de comunicação e narrado por um jornalista com múltipla personalidade, que esporadicamente cria a ilusão momentânea que afinal não nos vai atingir. Tudo, para descobrir que afinal não só nos vai atingir, como o asteróide é do dobro do tamanho previsto e vem carregado de macacos assassinos, tormentas eléctricas e leite coalhado.

Estou triste com a humanidade. Não deveria ser assim tão difícil. Se há um deus, está, certamente, tapado com um lençol, num canto do céu, em posição fetal à espera que tudo isto passe. Não se tapem também com um lençol, está nas nossas mãos controlar este ano.

sábado, 30 de maio de 2020

Branco Nuclear

Tom moreno, beijado pelo sol, que emana todo o calor e alegria do Verão. Guardo com carinho os anos de pele quente ao sol e cabelo que aclarava com a força do Verão. Hoje, a minha composição é definida pelo atraente tom de branco-defunto. Um branco pálido que daria inveja a qualquer folha A4 pronta a ser impressa.

Viver na Holanda é sinónimo de nos atirarmos ao chão da sala quando um raio de sol penetra a janela, para sugar 5 minutos daquele centímetro quadrado de alegria. Aqui dá-se muito valor aos dias de calor e as pessoas saem à rua de garrafa de vinho em punho e rumam para os parques no centro da cidade onde, sem água onde mergulhar, vão estar de biquíni posto até as dez da noite. Quem não tem cão, caça com gato, já dizia o outro. Aqui há praias, mas tendem a ser algo ventosas e a água, ai jesus a água, é a sensação térmica de enfiarmos a cabeça num granizado e perder o nariz, toda uma experiência que podemos desfrutar graças a um mero segundo dentro de água (sim, cai-vos o nariz se metem o dedo gordo do pé na água, um fenómeno fabuloso).

Eu idolatro o espírito dos holandeses e a maneira como dão valor ao sol, como portuguesa sempre o tive como garantido, mas agora compreendo. Se há sol, vão-me ver a comer na rua, nem que seja à beira da estrada à chapada com uma gaivota e a levar com gravilha na testa. Preciso de sol e nem é tanto pela vitamina, mas pelo aspecto moribundo que tenho, vejo as minhas veias com mais clareza que nos livros de ciências. Não sabia que o grau abaixo do branco era o invisível, mas isso parece.

Auto bronzeador não é uma solução para alguém como eu. Não poder tocar em nada durante horas, ter de trocar lençóis e, depois de tudo, correr o risco de parecer uma zebra, parece-me muito trabalho para ser confundida com a prima afastada de um cavalo. Solários? Devo ter sido um leitão da Bairrada noutra vida, tenham paciência, mas o conceito cria-me calafrios. Como última opção poderia escolher uma cor bonita e tatuar-me de cima a baixo no mesmo tom, seria inovador, consistente e provavelmente tão doloroso que desistiria depois de um pé moreno.

Com determinação, lutarei com holandeses pelo meu lugar ao sol, pois parece a maneira mais económica e menos trabalhosa de ficar morena. Irei colocar todo o meu empenho em ir de indumentaria diminuta para um parque, onde todas as minhas forças serão empregues em esparramar as minhas pregas pelo relvado, com precisão e arte.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Um Espirro Por Um Funeral

As crianças são criaturas inocentes, cheias de alegria e sonhos maiores que o mundo, cuja coordenação motora e raciocínio lógico nem sempre estão aliados, criando queixos esfolados, joelhos negros e egos destruídos. Considerando que sou um ser que, desde pequena, tropeço na chuva e escorrego no ar, cedo percebi que de pouco servia chegar a casa e queixar-me às entidades grisalhas. Por cada dedo que partisse, tinha de sucumbir à história em como a minha avó tinha partido os dois braços a estender a roupa num dia de verão em que fez demasiado vento. Lascar um dente era sinónimo de vê-la a sacar da placa e me a enfiar olho adentro (foi o começo da minha primeira conjuntivite, quase que ficava cega, mas não me queixei), para mostrar como não tinha nenhum e estava rija. Tudo aquilo do que se possam queixar até a uma certa idade, vai ser superado com esplendor por qualquer idoso. Isto, porque, vos levam cem anos de avanço, ou estão senis e acreditam que fizeram parte do império egípcio e andavam a carregar calhaus às costas para bel-prazer de César.

No dia em que sai de casa calculei que esta fase havia passado, sabendo que um dia seria eu a que arremessaria o seu olho de vidro à cabeça do meu neto insolente, quando ele se queixasse de ser míope. Porém, o descanso do guerreiro não passava de uma miragem. Não houve intervalo na fase do queixume e os meus pais nunca me alertaram com medo de que eu nunca saísse de casa. Arranjei um homem!

Os elementos do sexo masculino têm em si, durante toda a sua vida, algo de veterano de guerra sociopata com lepra sazonal. Eu caminho em casa como se de um pequeno pónei me tratasse, é só magia e confettis, nunca me dói nada. Não importa se uma doença se transmite por contacto físico, via respiratória ou voodoo, os homens apanham tudo por osmose. Não estou destinada a sentir o glamour de me doer um dedo, nem a alma, sem ter que meter compressas frias na alma de outro.

Infelizmente, tive algumas relações fugazes, mas intensas, com a minha retrete ao longo dos anos e as dores que tive, proporcionaram-me momentos de júbilo existencial, equivalentes ao senhor do filme América Proibida que come o lancil. Inúmeras vezes pensei vislumbrar a minha oportunidade de ouro. A personagem masculina aproxima-se como um cavaleiro alado, os meus olhos lacrimejam de emoção, agarra-me nas mãos com ternura, tosse duas vezes, cuspe para a pia e toma a decisão administrativa que vai morrer se não tomar soro nesse mesmo instante.

Esta é a história da reforma antecipada da minha esperança de poder queixar-me de dores. Agora compreendo porque é que não tenho memória da minha mãe doente, pois se ela espirrasse, lá teria de levar o meu pai às urgências.


sexta-feira, 22 de maio de 2020

Oração da Noite

Querida Santinha dos Labores Que Não Enriquecem Nem a Alma,

Dai-me forças para não esbofetear incessantemente a minha entidade patronal. Já não sei se são dias, semanas ou meses a formar novas rugas da incredibilidade por cada palavra que profere. Não o julgo querida santinha! Assumo que tenha caído de cabeça de um terceiro andar quando era criança e tenha batido nos estendais de todos os andares a caminho do chão. A verdade é que as minhas sobrancelhas já me tapam os olhos de tamanhas pregas, de horas de sobrolho esticado aos céus, e a parte inferior da minha cara foi vítima de paralisia, ficando o nariz arrepanhado num dos lados e a boca levemente aberta em descrer, da repetição da minha cara de “estará a brincar? Estará drogado? Estarei a ter um AVC?”.

Penso como terá chegado a este posto, por talento não foi certamente, será primo de alguém? Não que ninguém ama assim um primo. Será que foi a típica ascensão por senioridade na companhia? A menos que queiram ter alguém a quem culpar quando a companhia ruir perante os seus olhos, não vejo o propósito.

Comportei-me, dei-lhe tempo e orientação para crescer como ser humano, mas não posso mais. Sonho com ele a ser alvo de treino dos Pauliteiros de Miranda. A quarentena roubou-me o poder de fingir que me importo e agora quando ele fala eu procuro alguma mosca que me entretenha. O telefone toca e eu tenho de filtrar a raiva em gritar exasperadamente, antes de atender com um (plausível e profissional): “Quê?”.

Preciso da tua ajuda santinha, que já me culpei a mim, mas nem eu acreditava nisso. Agora encontrei um grupo de almas tão perdidas como eu, que não o suportam, e vejo isto a descambar rapidamente.

Lanço as mãos ao céu em louvor a todas as almas com entidades patronais que não são completos energúmenos. Agora deixe de se dar palmadinhas nas costas e de jogar poker online cara Santa. Ponha um bocadinho de dedicação no meu caso, que já levo um par destes chefes e a meu ver tem você favoritismo por alguns dos seus crentes. Não ando eu para aqui a rezar para que você esteja a ler a Maria divina.

Que a força esteja consigo (ou como quer que seja que se acaba uma oração).

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Império de Fita Adesiva

O fino salto alto aferrasse ao soalho, como um metrónomo a marcar o ritmo, sente-se a identidade feminina a ressoar em cada passo. Giro a cabeça e suspiro exasperadamente, como quem salta um batimento cardíaco. Aquele corpo de porcelana com medidas perfeitas, movendo-se com uma harmonia que me faz trautear a Garota de Copacabana. Será isto inveja ou um teste à minha heterossexualidade? Oiço, então, um cavalheiro a perguntar-lhe qual a sua graça, respondeu com o tom de voz de um pai natal ébrio a trabalhar em part time num centro comercial: Joaquim.

Temendo não ter as qualificações necessárias para o trabalho, tomei a decisão que quero ser uma Drag Queen. Tenho consciência que o conceito passa por homens que se vestem e actuam como mulheres e eu sendo uma, poderia ser subentendido como batota, mas quem me conhece, sabe que a minha maquilhagem tem o traço artístico de um desenho indecifrável de uma criança de 4 anos (sim, aquele que guardam e fingem que é lindo, mas por dentro pensam que mais vale que o catraio cresça para ser bonito ou inteligente, que artista não vai ser) e ando de saltos altos, como uma mula em andas na calçada portuguesa, a tentar apanhar moedas do chão com a boca. Mas, atenção, não quero ser uma Drag Queen matrafona que para isso fico quieta, quero alcançar um nível que faça ambos os sexos duvidar da sua sexualidade, ao não saberem o que raio eu sou. O suprassumo dos jogos mentais femininos.

São mulheres de tomates. Efectivamente. Anos a melhorar as suas maquilhagens, vestuários e a arte de levar a genitália colada com fita adesiva entre as pernas, muitas vezes, durante mais de 10 horas. Eu não consigo nem empurrar a minha hérnia para dentro, que fique quieta por cinco minutos e estes homens, fazem desaparecer um conjunto de órgãos para lugares nunca antes explorados. Levem um grupo de mulheres a um striptease em que o stripper dispa a tanga e o homem é apedrejado por atentado ao pudor, enquanto elas convulsam com arcadas (ninguém quer ver aquela coisa a bambolear por aí livre). Mas, se ele saca de um rolo de fita adesiva e faz a genitália desaparecer, até o viramos do avesso para compreender onde foi aquilo parar. O mundo Drag gera-me tantas perguntas! Seriam histórias dignas de ser contadas junto à lareira, a mulheres que tiram apontamentos fervorosamente, sentadas de pernas cruzadas num tapete felpudo.

Poderia, finalmente, sair dos cânones de nomes cliché e ter um nome artístico. A minha cabeça brame com um sem fim de opções. Poderia ser algo com classe, como Estrelícia Davenport (a minha definição de classe soa a nome de actriz porno Venezuelano dos anos 80 está claro), descritivo como Luísa Marmota ou até artístico-bardajão como Candy Diaz. Um nome com impacto, uma peruca de três cores e enchimentos a dar-me as curvas certas, e eu seria capaz de dominar o mundo [ponto de reflexão: anos a ouvir marcas a anunciar push ups diminutos, como a grande inovação, após a invenção do pão de forma, e agora descubro que há todo um mercado de almofadados corporais que podiam ter-me ajudado a fazer publicidade enganosa com muito mais engenho e cair sem me esfolar toda? Sinto-me defraudada].

Ser Drag Queen é uma prova de poder de homens, que têm a arte de enxovalhar o sexo feminino em áreas que lhes são designadas à nascença pela sociedade. Não só o fazem, como o fazem melhor que muitas de nós e nos fazem reflectir, em como queríamos ser bonitas como o Osvaldo. Chega de patriarcado Drag, que eu também quero!


sexta-feira, 15 de maio de 2020

Amor Incondicional

“Quero alguém que me ame incondicionalmente”. Aquela frase cliché, que todos parecem proferir levianamente quando alguém lhes pergunta o que buscam num parceiro. Ao nível de muitas frases idiomáticas, como “Pensar na morte da bezerra”, compreendemos o significado, mas, garantidamente, foi uma constatação formulada por alguém sob o efeito de estupefacientes.

Eu quero amar e ser amada condicionalmente! Quem diz que o seu amor não tem condições é porque é ingénuo ou não sabe amar. Sendo a principal condição, o respeito.  “Ah, mas o respeito está implícito no amor”, se este é o vosso pensamento, por favor enviem-me um email com a vossa morada que terei todo o gosto em deslocar-me ao vosso domicílio e esticar-vos uma lambada. Devia ser, mas não é.

Visualizem, acordar todos os dias com o rabo do vosso parceiro na vossa cara a expelir ventosidades pelo ânus, porque vos ama e não há nenhuma condição que impeça o seu sentido de humor podrido. Estar prestes a dar uma garfada num muito antecipado almoço e, o amor da nossa vida, decide fingir que é um gato, esticando em câmara lenta a sua mão em direcção ao nosso prato, olhando-vos fixamente, como se isso fosse impedir de vermos a direcção dos seus membros superiores, alcança o prato e dá-lhe patadinhas até que caia da mesa, sorri e come o seu bife, como se nada fosse, porque vos ama e não há nenhuma condição que o impeça de comportar-se, literalmente, como um animal. Imaginem estar na sala de estar, o puto começar a gritar que não quer comer as ervilhas e, a vossa cara metade, entre palavras ternas, projecta a criança janela fora como um frisbee, porque vos ama e não há nenhuma condição que impeça arremessar os vossos prodígios pela janela.

“Não sejas exagerada!”, podem pensar, mas sejam quais forem as vossas condições, todos as devíamos ter, e há um sem número de casais que se afundam nas expectativas de uma expressão desacertada. Descobrir que alguém me trai, é quando baste para agradecer pelos bons tempos vividos e dar-lhe a morada na Gronelândia para onde enviei todos os seus pertences. No dia em que um homem me tocar com um dedo que seja, eu vou sair de casa, entrar num concessionário, pedir para fazer um test drive ao maior carro que tenham e passar-lhe por cima. Como podem ver: condições! Porque a única pessoa a quem vou amar incondicionalmente, é a mim mesma.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Crime, Disse Ela

Entidade ao nível de um detective ou médico forense com um olhar clínico sem precedentes. A sua experiência ímpar garante que nenhuma pergunta é demasiado complexa, nenhum caso é demasiado violento e não há mistério algum impossível de resolver. Perante momentos gore, não pestaneja, tira apontamentos enquanto come fervorosamente pipocas. O reflexo do sexo feminino perante qualquer filme, livro ou história de crime contada no vão de escadas pela vizinha Ludovica.

Desde tenra idade a mulher mostra sinais de algum défice no campo da repugnância. Do ponto negro no nariz do namorado que ela sente ter que fazer explodir ou vai ter um ataque de ansiedade, ao assistir a séries de assassinos em série, avaliando as fotos dos defuntos como se fosse mudar a narrativa do episódio por descobrir algo novo naquele cadáver decomposto, nada a impressiona. Sabe-se lá donde vem este estômago de ferro. Pode ser que esteja relacionado com mensalmente sermos uma pinhata de resíduos grotescos, ou sei lá, sermos capazes de criar pestanas num embrião enquanto comemos torradas.

Se pensam que é uma casualidade que todas as livrarias tenham destacadas no centro a temática de crime e que a Netflix esteja a desenterrar a história de cada indivíduo que, em algum momento, matou um gato a grito, para fazer um documentário de dez episódios, enganam-se! As mulheres são grandes consumidoras da temática, pois gostam de resolver mistérios e lidar com problemáticas que parecem impossíveis de resolver. Metade das relações que uma mulher tem ao longo da vida, fundam-se na premissa de poder moldar aquele projecto de homem, em alguma coisa que se preze. Começam por tentar decifrar o mistério de determinado galã estar solteiro, sendo este, tão bem parecido; e, ao começar uma relação, acabam por lidar com as problemáticas, desencadeadas, entre outras coisas, pelo facto de ele ser um sociopata, ou dos pés lhe cheirarem a peúgas centrifugadas com cozido à portuguesa. Mas, como qualquer caso (de mau aproveitamento de tempo) criminal, chega a altura de encerrar o caso e arquivar o expediente daquele ser inanimado, a quem abanámos com um pau por algum tempo, a ver se mexia.

Poderiam intuir, então, que somos perigosas. Afinal de contas, alguém que faz um bailinho celebrativo por anunciarem outra temporada de Mind Hunters e vê cada episódio a um palmo do ecrã, pode ser que saiba o suficiente de assassinos em série para a vossa vida estar em risco. Não temam meus caros. Gostamos de estar informadas, porque, caso não saibam, historicamente, as mulheres têm uma tendência a ser o sexo lixado. Não fazemos intenções de sujar as mãos ao desbarato, mas se soubermos as manhas todas dos grandes cérebros do crime, estamos um passo mais perto de nos defendermos e matar o coronel mostarda, na biblioteca, com um candelabro, do que se ficarmos quietas a ver se chove (vá...isso...e somos um bocado sádicas).

sábado, 9 de maio de 2020

Tradição Analógica

Há tradições familiares que pela força dos tempos se destroem para sempre. Como os belos fins de tarde a queimar bruxas na praça, há 400 anos, ou ir às sextas feiras buscar filmes ao clube de vídeo, há mais anos do que gostaria de admitir. Hoje pretendo falar da última, uma simples acção que concentrava uma amálgama de emoções ímpar.

Antecipação.

Caia a noite e rumávamos em família ao clube de vídeo. O cérebro em pleno festim matemático, a vida ensinava-nos estatística e avaliação sociológica desde pequenos. Era fundamental ter controlado em que dia sairia cada filme, calcular uma média de dez cópias disponíveis para alugar (se fosse um filme muito antecipado pelas massas), avaliar a probabilidade de dez pessoas do bairro quererem vê-lo e, acima de tudo, estudar a velocidade média de cada vizinho a chegar ao ponto de extracção. Olho com repulsa os petizes que se queixam dos 5 segundos que um vídeo demora a carregar. Estes nunca compreenderão a frustração de antecipar ver um filme, esperar quase um ano para que saia do cinema e seja disponibilizado em cassete, não conseguir uma das cópias no dia do lançamento, ter que esperar dois dias para que algum bom samaritano devolva o vídeo e rezar termos o timing perfeito, para o conseguir na primeira devolução.

Adrenalina.

Havia uma tensão no ar demarcada por papelinhos com carinhas tristes que destacavam os filmes já alugados. Havia sempre aquele membro da família que sabíamos que devia ficar em casa pelo seu gosto antagónico e faria o processo ser um longo episódio de Shark Tank, em que cada membro da família tinha que defender a sua sugestão como se estivesse nela pendente um investimento milionário. A adrenalina de podermos levar a nossa adiante. Uma última caixa sem papel, uma família unida pelo desejo de o alugar, o primo estúpido que certamente foi adoptado (não por ser estúpido, mas por ser ruivo), a insistir num filme independente que parecia um porno, 20 minutos a discutir a berros e a vizinha Clotilde que entretanto chegou e decidiu contar o final de três filmes, sem que ninguém lhe perguntara. Um cliente entra, os seus passos ecoam, vai directo ao balcão e pede o filme! O nosso filme! O dono da loja, pesaroso, aproxima-se de nós e coloca na caixa que eu agarrava fervorosamente, um papelinho. Era demasiado tarde. Os meus joelhos sucumbiam à pressão e caia.

Culpa.

Era hora de levar a segunda opção para casa. A que só o primo estúpido queria (afinal não era um porno). Ninguém abdicava de marcadas feições contrariadas e cenhos franzidos. Ele sentiria culpa se não fosse estúpido, mas nós, sentíamos por o ter deixado levar a dele a cabo.

Orgulho.

O filme poderia ser excepcional, mas não o poderíamos admitir. A batalha que havia arrebatado o nosso orgulho, ainda era recente. Fosse como fosse, residia nessa cassete um investimento económico e emocional. Que não ocorresse a ninguém perder um só momento do filme. Ir à casa de banho ou à cozinha buscar um petisco era uma acção colectiva, com momento a ser estipulado pela matriarca. Se o patriarca adormecesse durante o filme, entoando um ressonar tenor, seria submetido à expulsão da sala, mas, não antes de lidar com a cara de desilusão e olhar de raiva de todos.

Ódio.

Toda a fluidez do funcionamento dos clubes de vídeos residia numa colaboração colectiva entre vizinhos. Mas, todos os bairros tinham um par de exemplares da mais pura escória da sociedade, que não respeitava os dois dias de entrega, sem medo das repercussões e ficavam com os vídeos, por vezes, mais de uma semana. Em nossa casa, determinávamos quem iria devolver o filme assim que o alugávamos, teria de ser uma acção precisa e sem falhos, como o desactivar de uma bomba. Sendo a bomba a minha mãe quando descobrisse que teria de pagar a multa por devolução atrasada. Mais nos valia ir vender um rim, para conseguir o dinheiro e ela nunca descobrir.

Compaixão.

A única alternativa era apelar à compaixão do dono da loja. Prometer a nossa fidelidade, independentemente da quantidade de vídeo clubes que abrissem no bairro, assinar a sangue tais intenções, sacrificar uma cabra numa noite de lua cheia e oferecer o nosso filho primogénito para repositor (eu fiquei a dever-lhe três fedelhos para repositores, menos mal que fechou). Assim, podia ser que, secretamente, rompesse a confidencialidade dono-de-clube-de-vídeo/cliente e nos dissesse quando teria o vizinho de vir a entregar o vídeo ou, melhor, nos guardasse uma das cópias quando fosse devolvida.

Perda.

A cada lua cheia, na acção social de rebobinar a cassete, o leitor de vídeo regurgitava fita negra. Era enfiar os dedos nos orifícios da cassete e rodá-la como se a nossa vida dependesse disso. O pânico, o horror, de ter de pagar por um filme que não era bom e que, possivelmente, só serviria como adorno de árvore de natal.

Mas a principal perda é que fecharam. Para sempre. As novas gerações nunca vão compreender depender de um parágrafo para avaliar se um filme seria bom ou mau. Executar uma leitura analítica e literária do título. Avaliar aquelas três micro-imagens na parte de trás da capa (o trailer da altura). Estudar a capa até ao mais ínfimo detalhe, imaginando de que raio se trataria o filme.

Saudosista? Quiçá. Mas adorava esta tradição. Hoje tudo é fácil, o trailer conta quase a história toda, vemos a avaliação no imdb e determinamos se merece o nosso tempo, a família raramente se reúne para ver filmes, se não gostamos do enredo aos cinco minutos paramos e vemos outro. 

Enfim…mudam-se os tempos, mudam-se os filmes.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Não Sabem o Que Perdem

“E vocês, para quando?”

A pergunta que todas as mulheres grávidas projectam, como uma bola de ténis, à cana do nariz das amigas que estão em relações longas, mas ainda não decidiram reproduzir os seus genes duvidosos. A dádiva da vida é algo fabuloso. Também fabuloso, é que mais futuras mães não levem cabeçadas quando proclamam esta pergunta com um tom carregado de julgamento.

Casa comprada, marido imaculado, emprego de sonho. Os objectivos base que, enquanto crianças, estabelecemos como garantidos antes aos 23 anos de idade, quanto muito. Vemos as princesas da Disney a amanharem-se com homens com património imobiliário (um fabuloso castelo, ou no caso do Simba, “tudo o que a luz alcança”, hoje em dia as imobiliárias já não medem as coisas assim, é uma pena), isto, antes dos 18 anos de idade e, no benefício da dúvida, proporcionamo-nos mais cinco anos, não vá a puberdade ser mais lenta que desejado. Soubesse a pequena Eu de dez anos de idade, que passaria dos trinta e ainda estaria a patinar em maionese existencial, teria tentado trepar de regresso ao conforto do útero da minha mãe.

As minhas amigas já vão pelo segundo e terceiro petiz, dando-se ao luxo de arruinar a vida de ao menos um deles com um nome que lhe vai proporcionar uma carga de porrada diária desde a creche. O nascimento de um novo ser é um milagre. Deposito toda a minha fé nas capacidades reprodutoras dos demais, para criar gerações que não estejam repletas de fedelhos mal-educados, mas eu acho que o meu relógio biológico veio sem pilha de fábrica. Eu assassino um cacto em menos de uma semana, seria imprudente procriar. Estou quanto muito a zelar pelo bem-estar dos vossos futuros filhos, porque filho meu aos 3 anos já saberia usar nunchucks melhor que o Bruce Lee.

Não nos prendamos aos cânones impostos pela sociedade, desfrutem das vossas decisões e sejam plenamente felizes com elas, independentemente, do que as pessoas que vos rodeiam estão a fazer. O vestido rodado da Cátia Vanessa não tem porque vos ficar bem, nem tão pouco a sua vida.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Cultura de Merda

“De Espanha nem bons ventos, nem bons casamentos”, entoou a minha avó sussurrando, como apelo ao meu bom senso ao despedir-se de mim, faz mais de cinco anos, quando embarcava o voo que me levou para a terra de nuestros hermanos. Ri-me, trocista, como se isso alguma vez fosse suceder. Eu, moi-même, a sucumbir aos encantos de um ser aciganado, vendedor de caramelos, carregado de brilhantina no cabelo, sentado num carro a diesel barato e com uma mãe dançarina de flamenco, carregada de maquilhagem, uma verruga à esquerda do lábio e uma flor do tamanho de um repolho na cabeça (se me faltou algum estereótipo peço desculpa, esforçar-me-ei mais para a próxima).

Arranjei então um namorado catalão. O que faz dele o pão de passas do território espanhol, não é bom para besuntar na molhanga de um bife, mas também não serve de sobremesa. É o “nem chove, nem molha” da metáfora padeira.

Há todo um processo de aprendizagem de ambas as partes para uma relação multicultural saudável. Eu ensino-o a comer pão com manteiga, não vá um dia a minha saúde estar débil e, ao pedir-lhe uma torrada, ele apareça com um pão besuntado com azeite e um tomate esborrachado no meio (era eu doente a um canto e ele morto no outro). Ensino-o que quando apresentada uma descomunal embriaguez, o procedimento essencial, aconselhado pelo Ministério da Saúde, é entupir-nos de caldo verde e pão com chouriço. Não churros com chocolate, que isto não é uma ida à feira de Matosinhos com os pequenos. Sou mediadora de debates e dou palestras a ele e aos seus familiares em como não há um monopólio de comércio de toalhas em Portugal e asseguro que as mulheres portuguesas não têm todas bigodes (ter temos, mas vá…).

Ele, por outro lado, ensina-me toda a sua cultura de merda. Não... Não estou a difamar a sua cultura, eles fazem isso sozinhos, eu só estou a constatar factos. Nós temos o Zé Povinho e eles o Caganer, agora ponderam vocês, “com tal denominação, de que se poderá tratar?”. Pois, caro leitor, trata-se de um personagem, que eles colocam no presépio, tipicamente de traje campesino, a defecar. Andam os três reis magos a dar voltas ao que oferecer ao salvador recém-nascido e, vem o camponês catalão, arrear o presente atrás da vaca do presépio. Ambas as culturas têm, então, pequenas estátuas de personagens, potencialmente ofensivas aos olhos de outras culturas. Os catalães, acharam então por bem, não ficar empatados connosco. Como o natal não tinha já problemas suficientes com os clássicos dilemas familiares e um campesino incontinente a invadir o presépio, criaram o Caga Tio. Este, resumidamente, é um pau, aconchegado numa manta, esboçando um sorriso agradável, olhos melosos e com um chapéuzinho como o do Caganer, ao qual os petizes enchem à paulada com outro pau (este sem olhos), na esperança de que o primeiro defeque chocolates. Ora que boa ideia! Ah! Mas têm de cantar ao mesmo tempo (qual ritual satânico).

Quando eu pensava que a Catalunha havia compactado todas as possibilidades de traumatizar novas gerações em duas personagens, eis que me é apresentado o seu equivalente ao nosso São Martinho. Quando era pequena, saltava alegremente sobre a fogueira, entoando cânticos joviais sobre as castanhas que iríamos comer em seguida. Eles vestem-se de doentes mentais, criam uma figura gigante de um louco e ateiam-lhe fogo com gasolina. É…! Eu com seis anos comia cola e os catalães aprendiam a ocultar um homicídio por acção do fogo.

Gosto de acreditar que ensinamos às nossas crianças bons costumes, mas tenho que dar o braço a torcer que se me tivessem ensinado que se andasse à paulada recebia doces, que defecar é considerado um acto religioso e que caso me depare com alguém louco lhe posso atear fogo e resolver o problema, o meu trajecto de vida tinha sido consideravelmente mais fácil.


sexta-feira, 1 de maio de 2020

Intervenção de Hemisférios

Caro Hemisfério Cerebral Direito,

Temo que isto da quarentena nos esteja a escapar das mãos. Temos de ver a situação com objectividade e eu sei que para ti isso é difícil. És o lado hippie do cérebro, muito útil para coisas como, sei lá, pintar quadros e ver relva crescer, mas não és o mais esperto dos hemisférios, sou eu, ponhamos assim a coisa. Hoje voltou a chuva e acho que isso escaqueirou por completo a nossa humana. Anda por casa enrolada numa manta, parece o resultado de um romance furtivo entre um padre e um taco, já para não falar, dos comportamentos de cão farejador à procura de comida processada. Ontem comeu uma bolacha que encontrou no sofá. Não temos bolachas em casa há meses.

Eu sei que volta e meia temos feito o esforço de a convencer e ser saudável, mas temos de ser mais consistentes. Não posso ser sempre eu a bombardeá-la com estatísticas mentais de quanto tempo vai demorar para perder o peso, enquanto tu, a fazes sonhar com donuts de tutu, que vivem em granjas de pizza e vivem atormentados por repolhos psicóticos (acho que tens um aneurisma para esses lados, temos que ver isso, isto não é normal nem sob o efeito de estupefacientes). A última intervenção foi um investimento de 162 horas, em colaboração com os anúncios do Instagram que eram só de gente saudável e tudo para quê? Para fazer uma flexão e dar-lhe fome. Passámos de três refeições diárias a sete, com lanchinhos pelo meio e nutella por intravenosa.

Já pedi ajuda ao coração, mas ele é um inútil que passa a vida a patinar na maionese. Os outros músculos foram internados nos cuidados intensivos internos por falta de uso. Ela leva dois dias a atirar-se da cadeira para cima do aspirador inteligente a ver se este tem potência para a arrastar até à cozinha. A nossa humana parece uma alforreca fora de água, não se mexe e dá uma mistura de repulsão e pena a quem olha para ela. Sinto que um destes dias alguém lhe vai dar com um pau. 

Ela não é má pessoa, mas tem a força de vontade de uma batata. Continua a convencer-se que quando a quarentena acabar vai alimentar-se a alface e fotossíntese, para compensar, e que irá ao ginásio sete dias por semana. Ou já não sabe quantos dias há numa semana ou está demente.

Peço-te, então, que unamos forças por uma última tentativa de salvar este corpo, porque os transplantes cerebrais ainda não são um sucesso e eu não tenho talento para ver tinta secar como tu. Convence-a que é boa em ioga, que não dança como uma palhaça e que a paragem respiratória de que sofreu a última vez que correu (para o frigorífico), foi um caso isolado derivado do clima. Juntos vamos conseguir!

Espero ansiosamente a tua resposta.

Cordiais cumprimentos,

Hemisfério Esquerdo.


quarta-feira, 29 de abril de 2020

Estica as Mãos

Nascemos e é-nos apresentada uma realidade cheia de vida e possibilidades. Um sem fim de oportunidades que podemos explorar, mas não faremos. Da mesma maneira que o médico não nos pergunta se queremos chorar naturalmente ou se nos pode agitar como um frango no ar e esbofetear o nosso “nalgal”, a vida também não nos oferece a escolha entre um emprego frustrado ou abraçar pandas profissionalmente. O escape, para muitos, é encontrado nos videojogos, onde podemos encarnar a personagem que mais desejamos ser e fugir à nossa realidade aborrecida.

A grande maioria de nós, restringindo-se por uma sociedade que nos disse que não podíamos ser todos extraordinários (ou o conceito da coisa perderia sentido), contentamo-nos com jogos que exploram a nossa pequenez. Há um perpetuar no sucesso de jogos onde podes viver o stress de ser empregado de mesa, a adrenalina de plantar tomates e passear galinhas, ou criar vidas que vais destruir gradualmente em reflexo da tua. A questão é que estas missões (chamemos-lhe assim para parecer épico), são de possível execução na vida real, mas são conhecidas pelo seu défice de glamour. O stress de ser um empregado de mesa cria-te urticaria e vives na possibilidade iminente de ser despedido, pela quantidade de batatas que roubas de pratos de clientes, para afogar as tuas mágoas; ter que degolar a Gertrudes para o jantar é terrível, porque ela corre mais que tu (pode ser relevante mencionar que a Gertrudes é uma galinha); e tomar más decisões que vão levar ao ruir da nossa existência é algo que fazemos com naturalidade, é um dom.

Não sou ninguém para julgar os criadores de ditos jogos, afinal de contas, já existem jogos de absolutamente tudo e ser inovador, por vezes, parece uma missão impossível. Mas, descobri esta semana, um simulador ao que acho que não lhe é dado o devido valor: o simulador do Papa. Chega de plantar nabiças online! É hora de sonharmos alto e conduzir a igreja católica ao seu apogeu, passear de papamobil, acenar a súbditos, ofender descrentes…ou o que quer que seja que o Papa faz.

Julguei ter em mãos o presente católico deste Natal. Até que tentei salvar um transeunte, numa das minhas passeatas esquizofrénicas, vestida de Papa pelas ruas de Amesterdão, dando-lhe com o meu Papa-ceptro na nuca enquanto gritava “Vade retro Satanás” (não faço mesmo puto ideia do que raio faz o Papa para se entreter), e ele, que afinal era um verdadeiro fiel, deu-me uma cabeçada e elucidou-me que havia um caminho mais divino a tomar. Algum ser iluminado havia criado o simulador de Jesus (chama-se I’m Jesus Christ, nem a minha cabeça perturbada chegaria a tanto sozinha).

Se já vos custava conceber as tarefas diárias do Papa, então preparem-se porque não há maneira de não ser um herege ao pensar nas possibilidades de Jesus. Avassalantes possibilidades e missões: levar Maria Madalena a um jantar de família com Deus e esperar aceitação das suas opções profissionais; apanhar bebedeiras e ressuscitar como truque para animar festas; lutas contra hereges em cima de água; usar as picaretas das palmas das mãos como armas mortíferas ou para fazer mojitos. Mas não… Este jogo explora toda a parte nobre, mas entediante, de ser Jesus, como esticar as mãos para curar a cegueira; esticar as mãos para parar tempestades; e esticar as mãos para alimentar homens esfomeados (o truque está em esticar as mãos caso não tenham reparado).

Agora que eliminámos uma linha que era tão ténue que nem sabíamos que existia, entre o tédio e a religião, podem-se considerar humanos mais completos. Têm agora o conhecimento necessário para estragar o próximo Natal aos vossos petizes, marcá-los para a vida e, quando chegue a altura, garantir o vosso lugar no mais segregado lar de idosos da sociedade.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Nos Entrefolhos da Memória

Abril tem uma adaga cravada na minha memória, cheia de dor e ressentimento. Foi em Abril, que numa Feira em Sevilha, perdi uma das minhas amigas nos entrefolhos do seu vestido, onde nunca mais foi avistada. Partilho com vós esta experiência traumática para que nunca tenham de passar pelo mesmo. Ocasionalmente, ocorre em casamentos, mas é, principalmente, uma problemática recorrente na Feira de Abril na Andaluzia e ninguém aborda o assunto com medo das represálias.

Com o pé do seu pai cravado nos costados e as suas quatro primas a puxar das cordas do corset, não podia deixar de admirar o tom rosado magnifico que a falta de oxigénio lhe havia proporcionado. Que inveja! A minha família são uns egoístas que nunca dispensaram tempo para me sufocar. Finalmente, estava dentro do seu magnifico vestido vermelho com pequenas bolas negras. Parecia a noiva de um bolo de casamento de um casal invisual, onde as cores haviam sido um claro acidente do pasteleiro, mas tinha bolas suficientes para se ler em braille e isso era o importante.  Estaria dentro desse vestido as próximas dez horas, aproximadamente, tudo o que comesse ou bebesse poderia ser o seu fim, pois, literalmente, não havia espaço para erros.

O seu pai levantou-a como uma viga de madeira para a encaixar a pés juntos dentro dos seus sapatos, visto que agachar-se não era uma opção. Estava claro que iria de boca ao chão em poucas horas, mas valeria a pena. Colocou os brincos de plástico de mola, que pareciam parte de uma máscara de Carnaval e, finalmente, ajudaram-na a colocar uma enorme flor, também esta de plástico, na cabeça (todo o meu respeito àquele pescoço com força sobrenatural). Uma parabólica disfarçada de rosa, que tapava todo o penteado em que havia trabalhado por horas, mas proporcionaria Sportv e os canais de cinema a todos na festa. Estava pronta! Com tanta coisa em cima que já nem se lhe via a cara, mas certamente estaria linda debaixo de todo aquele carnaval de folhos e pétalas mutantes.

Levávamos já umas horas de festa e ela implorou por ajuda para usar a casa de banho. Pedimos resistência, pois não seria humanamente possível voltar a enchouriçá-la com tamanha precisão, mas ela não podia aguentar mais. Éramos cinco num espaço diminuto, cada uma puxava por um lado do vestido e havia folhos por todo o lado, pareciam cada vez mais, não nos chegavam as mãos! O silêncio. Onde estava? Gritámos por ela, lançámos-lhe cordas, mas era demasiado tarde. Havia sido tragada por uma tradição antiquada, um mau gosto ímpar e o repolho que levava na cabeça apenas lhe serviu de âncora.

Aprendam com o sofrimento alheio. Com as mãos no coração agradeço que este ano não haja Feira de Abril.

sábado, 25 de abril de 2020

Dando a Outra Face

Tempos de peso imensurável. Cravar na parede mais um dia passado em quarentena, suspirar perante as medidas dos governantes, recear pelo futuro a que seremos condenados e acima de tudo temer pelos nossos, que queremos a são e salvo. Tempos em que, como indivíduos e nação, espelhamos aquilo que somos, mas o espelho dos americanos parece estar embaciado.

Um presidente é o reflexo do seu povo, diriam alguns, afinal de contas, foram estes que votaram para este obter o cargo. A realidade é que conseguimos ver à distância quem votou em dita bola de plasticina laranja para presidente, normalmente, destacam-se pelas tatuagens supremacistas, bonés do Trump, ausência de dentes e bom senso. Todos os demais, que ficaram em casa e não foram votar em 2016, tiveram quatro anos para se arrepender.

A todos os energúmenos que ingressassem em hospitais por injectarem Cif para a veia depois dos conselhos do presidente deviam-lhes retirar, automaticamente, o cartão de eleitor e levar um par de lambadas, para que lhes saísse o Cif pelas ventas. Mas, dando a outra face, quem os pode julgar? São pessoas desesperadas que querem a sua liberdade e o seu presidente devia ser alguém em quem pudessem confiar.

Mudamos de canal e vemos que enquanto muitos se mantêm em casa e respeitam a quarentena, manifestações enchem as ruas de vários Estados, por motivos de força maior: os cabeleireiros e as lojas de fertilizantes para plantas estarem fechados. O Drama! O Horror! Invocam a gritos o cliché de que a América é a terra da liberdade e querem ter a liberdade de fazer uma permanente e cavar batatas. Trump em conferências e tweets congratula estes bravos que lutam pelo que querem. Se a OMS enviar esta gente toda para uma ilha qualquer na Antárctica com uma sandocha de atum, é o melhor investimento para a saúde de todos nós, mental e física. Mas, dando a outra face, quem os pode julgar? São pessoas desesperadas que querem a sua liberdade e o presidente não devia ser cheerleader de más condutas.

O presidente deixou que o responsável de cada Estado determinasse em que momento podem regressar à normalidade e, entretanto, que tipo de negócio é fundamental permanecer aberto na zona que governam, ao que parece, sem limitações nem questionar a sanidade mental de cada um. Temos, então, Estados em que os negócios e espaços fundamentais são: lojas de armas (bom truque psicológico: quem precisa de ter medo de uma pandemia, se há pacóvios armados em todo o país), pavilhões de wrestling (porque há que lutar contra a pandemia) e praias (de acordo com o presidente o sol queima o vírus)…é! O Estado de Florida consegue destacar-se, sendo um combinar perfeito de todas as más ideias de todos os outros Estados. Os próprios americanos começam a rezar para que Florida se descole acidentalmente do continente e parta à deriva com todos os seus habitantes. Mas, dando a outra face, quem os pode julgar? Acho que nós podemos, que somos pessoas desesperadas que já não têm mais faces para dar!

Queriam ver-se livres dos imigrantes? Queriam que os mexicanos pagassem pelo muro? Não se preocupem. Eles estão já a fazer as malas e vão encarregar-se de construir o muro no regresso a casa, para certificar-se que vocês não os seguem. Imagino os pobres nativo americanos a dar voltas na tumba de tamanha vergonha alheia, a pensar, e morremos nós para isto.

Desisto de ver noticias! Agradeço que me mandem um sms quando puder sair de casa ou quando tiverem instalado uma coleira de choques a Trump, para que ele leve descargas cada vez que diz baboseiras [pensamento exacerbado, que vou manter para mim mesma: antigamente os reis e presidentes caiam como tordos, e agora que é preciso, não há psicóticos com boa vontade].


Um bem haja e um feliz 25 de Abril a todos.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Recessão de Sonho

Caríssima entidade patronal,

Após reflectir, seriamente, quanto à oportunidade única que me foi dada de trabalhar desde o conforto do lar, venho por este meio comunicar, que estou capaz de matar uma cabra a grito (se me providenciarem uma cabra, terei todo o gosto de vos provar a veracidade desta afirmação por vídeo conferência).

Todas as manhãs ao toque do alarme, que eu carinhosamente esbofeteava repetidamente (o botão nunca parece estar no mesmo sítio, vicissitudes da vida) eu desejava poder trabalhar desde casa, pobre néscia era. Agora que compreendo as normas deste convénio, prefiro voltar a ver-vos ao vivo para que consigam experienciar, não só o meu olhar desaprovativo de tudo o que dizem, como consigam desfrutar dos efeitos sonoros proporcionados pelos meus eloquentes suspiros. Quem sou eu para vos privar do deleite da minha presença e de tal experiência sensorial?

As vídeo chamadas são o principal motivo para a ruína desta experiência social. Acho incongruente e anti natura a expectativa de me verem numa indumentária que não seja um pijama ou, o cânone cultural, que é a “roupa de estar em casa”. Diria, até, que é antipatriótico! Não podem fazer seminários de 8 horas e esperar que não coma, beba ou adormeça. Estou farta de ser julgada por pedir palavra a meio das conferências para comunicar que vou defecar, mas também me julgam quando desapareço sem dizer nada e, nem falemos, da vez que vos levei comigo para a retrete (continuei a olhar fixamente para vocês durante todo o processo, com inteira atenção, não compreendo o que mais querem de mim!). Dói-me cada vez que interrompem a minha sessão de zumba e, ainda por cima, duvidam da minha palavra quando garanto que estava a trabalhar no orçamento que me havia sido pedido.

Não sei que dia é hoje e, honestamente, enquanto não me ligarem vou fingir que é sábado. É, então, dia de reflectir sobre a vida. Concluí, que gosto de estar em casa, apesar dos meus glúteos terem agora vida própria e estarem tão grandes que se registaram para votar. Mas se estar em casa requer que tome banho, me maquilhe, vista apresentavelmente e tenha de fingir que estou com atenção ao que dizem, prefiro sair à rua!

Com desejos de soltura imediata, antes que coma o canário,

Cordiais cumprimentos.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Subsidiação de Estilo de Vida

Exmos. Senhores,

Venho por este meio felicitar a iniciativa, da qual tive conhecimento, em que vários países subsidiam a mudança de sexo a pessoas que provam estar a sofrer de uma limitação psicológica por terem nascido no corpo, digamos, errado. Gostava de vos apresentar o meu caso e espero que o tenham em consideração para futura subsidiação.

Eu nasci para ser uma dondoca e fui colocada, erroneamente, num cenário suburbano e operário. Eu não fui feita para laborar e estou a sofrer angústias terríveis. Todo o processo de acordar cedo e ter de efectuar...coisas…cansa! Já para não falar do bullying constante. Não há dia em que não me julguem preguiçosa e me escravizem em nome da produtividade proletária. Eu não pedi para ser colocada nesta posição! Ninguém me vê a apontar o dedo à débil desenvoltura dos meus progenitores com jogos de azar, que me poderia ter poupado esta vida repleta de tamanhas chagas. Gostaria, portanto, de candidatar-me ao vosso subsídio pois sofro de clara limitação psicológica por ter nascido num corpo errado, nomeadamente, de pobre. Saio bastante em conta pois gosto da minha genitália, mas gostaria ainda mais se ela estivesse agora esborrachada no divã de uma penthouse na Indonésia.

Fui diagnosticada pelo Google com uma doença terminal. Sofro de delírios quanto ao meu status e o meu estilo de vida opulente levará ao meu padecer, se não paro de chamar de pobretanas a transeuntes aleatórios, enquanto faço pontaria à testa dos seus rebentos com moedas de cêntimo. De acordo com o médico especializado que me diagnosticou, a única possibilidade de salvação é uma mudança drástica de estilo de vida e, caso vos sobrem fundos, ajudaria, à ansiedade de tamanha transição, um implante mamário de copa D.

Não temam, pois quero ser um membro activo na sociedade e quero trabalhar! Só peço, humildemente, um emprego no qual seja feliz, e onde o salário seja, proporcionalmente, inverso à quantidade de trabalho. Quero alcançar os pequenos luxos da vida, como não saber quantas assoalhadas tem a minha casa e nunca mais temer o fim de um rolo de papel higiénico (que resulta sempre naquele cenário degradante, de esticar-me na sanita para alcançar outro, que por algum motivo sombrio se guarda num móvel nada acessível), pois haverá sempre um novo, dobrado cuidadosamente em triângulo, por um jovem de quem nunca saberei o nome, porque não me interessa.

Caríssimos, sem vocês não conseguirei! Preciso do vosso financiamento para esta causa justa e de real importância. Ao contrário dos diamantes, a família Kardashian não é para sempre e, na sua ausência, alguém precisa colmatar todo o vazio que a sua existência aporta ao mundo. Eu sou a vossa pessoa.
Cordiais cumprimentos.

 
[Uma ode às grandes empreendedoras da vida, como as Kardashian, a quem não falta genitália para mendigar. Perante as brumas da memória de que uma delas criou um crowdfunding para ser a bilionária mais jovem do mundo…e ter conseguido]

domingo, 19 de abril de 2020

Têm Oito Saídas de Emergência

O horizonte vislumbra-se ao longe, incidindo sobre ele, raios de luz que parecem divinos. Agradecemos aos céus a sorte que temos, abrimos os braços de rompante para planar sobre as nuvens que nos rodeiam. Apercebemo-nos, então, que estamos num avião e esticámos uma bofetada à hospedeira que, garantidamente, irá cuspir em todos os refrescos que me sirva nas 12 horas de viagem que ainda faltam.

Entrar no avião e cumprimentar a hospedeira de monho perfeitamente centrado, que repete ritmicamente saudações como se tivesse sido programada para autodestruir-se se um passageiro não se sente bem-vindo. Indica-me o lugar, com um olhar de agradecimento, quando observa que não entro a bordo com trigémeos recém-nascidos. Pedi lugar à janela, não pelas vistas, mas para evitar que a clássica senhora de fato de treino nos tente passar por cima a cada dez minutos para esticar as pernas, glorificando as suas varizes, como um memorial a veteranos de guerra. Olhamos para os passageiros a entrar, como se um desfile se tratasse, rezando, mentalmente, que não fique ao nosso lado um ser da lista negra: bebés (ou qualquer ser que supere os decibéis concebíveis ao ouvido humano); pessoas que não respeitam as leis de convivência aérea (como: a pessoa sentada no meio tem o direito legal aos dois apoios de braço); pessoas que não foram cordialmente apresentadas a nenhuma marca de desodorizante; indivíduos a quem a companhia aérea devia ter proporcionado dois lugares, mas o capitalismo não o permitiu, transbordando dobras de pele por encima dos apoios de braços.

É hora de voar e não questionar como aquela carrinha com asas vai chegar ao seu destino. O importante é que foi barato e há bar aberto durante todo o voo. A hospedeira começa a fazer a demonstração de segurança e todos os passageiros fingem que estão ocupados, excepto eu, que com o olhar mais penetrante e desconfortável, a olho fixamente. Isto, porque sei, que a minha vida pode depender desses minutos de atenção. Não caso o avião caia, porque aí estamos todos mortos (que isto não é o Lost), mas porque sei, que é uma questão de tempo até que uma hospedeira perca as estribeiras, saque de uma metralhadora e dê cabo de toda a gente que fingiu estar a dormir nos seus dois minutos de fama. Isto, enquanto eu como M&Ms no cockpit, cortesia da casa, por bom comportamento.

As mordomias de ter alguém durante doze horas a trazer-me comida, bebida, mantinhas, e almofadas, enquanto desfruto de filmes que ainda não estão no cinema (nem nunca vão estar), é um luxo! Está bem que, passado um par de horas, quero cortar as pernas de tão inchadas que estão; quero empalar a velha do assento da frente para que deixe de testar os limites da cadeira reclinável; e estou farta de evitar a unhaca do dedo do pé do senhor do acento de trás que, como um idoso de gabardina sem nada por baixo, espreita sorrateiramente entre a janela e o meu banco, aguardando o seu momento de glória. Mas vale a pena (porque não estamos sóbrios quando nada disto passar)!

Aterramos, sinais de cintos ainda acesos, mas toda a gente, que aguentou 12 horas sem tugir nem mugir, precisa de se levantar assim que as rodas embatem no chão, como suricatas em êxtase. Chega o momento de sair, despedir da hospedeira que olha fixamente o vazio, questionando a sua escolha profissional, e concluir que temos tempo de constituir família no terminal do aeroporto antes que cheguem as nossas malas.

Não há nada como viajar.