quarta-feira, 29 de abril de 2020

Estica as Mãos

Nascemos e é-nos apresentada uma realidade cheia de vida e possibilidades. Um sem fim de oportunidades que podemos explorar, mas não faremos. Da mesma maneira que o médico não nos pergunta se queremos chorar naturalmente ou se nos pode agitar como um frango no ar e esbofetear o nosso “nalgal”, a vida também não nos oferece a escolha entre um emprego frustrado ou abraçar pandas profissionalmente. O escape, para muitos, é encontrado nos videojogos, onde podemos encarnar a personagem que mais desejamos ser e fugir à nossa realidade aborrecida.

A grande maioria de nós, restringindo-se por uma sociedade que nos disse que não podíamos ser todos extraordinários (ou o conceito da coisa perderia sentido), contentamo-nos com jogos que exploram a nossa pequenez. Há um perpetuar no sucesso de jogos onde podes viver o stress de ser empregado de mesa, a adrenalina de plantar tomates e passear galinhas, ou criar vidas que vais destruir gradualmente em reflexo da tua. A questão é que estas missões (chamemos-lhe assim para parecer épico), são de possível execução na vida real, mas são conhecidas pelo seu défice de glamour. O stress de ser um empregado de mesa cria-te urticaria e vives na possibilidade iminente de ser despedido, pela quantidade de batatas que roubas de pratos de clientes, para afogar as tuas mágoas; ter que degolar a Gertrudes para o jantar é terrível, porque ela corre mais que tu (pode ser relevante mencionar que a Gertrudes é uma galinha); e tomar más decisões que vão levar ao ruir da nossa existência é algo que fazemos com naturalidade, é um dom.

Não sou ninguém para julgar os criadores de ditos jogos, afinal de contas, já existem jogos de absolutamente tudo e ser inovador, por vezes, parece uma missão impossível. Mas, descobri esta semana, um simulador ao que acho que não lhe é dado o devido valor: o simulador do Papa. Chega de plantar nabiças online! É hora de sonharmos alto e conduzir a igreja católica ao seu apogeu, passear de papamobil, acenar a súbditos, ofender descrentes…ou o que quer que seja que o Papa faz.

Julguei ter em mãos o presente católico deste Natal. Até que tentei salvar um transeunte, numa das minhas passeatas esquizofrénicas, vestida de Papa pelas ruas de Amesterdão, dando-lhe com o meu Papa-ceptro na nuca enquanto gritava “Vade retro Satanás” (não faço mesmo puto ideia do que raio faz o Papa para se entreter), e ele, que afinal era um verdadeiro fiel, deu-me uma cabeçada e elucidou-me que havia um caminho mais divino a tomar. Algum ser iluminado havia criado o simulador de Jesus (chama-se I’m Jesus Christ, nem a minha cabeça perturbada chegaria a tanto sozinha).

Se já vos custava conceber as tarefas diárias do Papa, então preparem-se porque não há maneira de não ser um herege ao pensar nas possibilidades de Jesus. Avassalantes possibilidades e missões: levar Maria Madalena a um jantar de família com Deus e esperar aceitação das suas opções profissionais; apanhar bebedeiras e ressuscitar como truque para animar festas; lutas contra hereges em cima de água; usar as picaretas das palmas das mãos como armas mortíferas ou para fazer mojitos. Mas não… Este jogo explora toda a parte nobre, mas entediante, de ser Jesus, como esticar as mãos para curar a cegueira; esticar as mãos para parar tempestades; e esticar as mãos para alimentar homens esfomeados (o truque está em esticar as mãos caso não tenham reparado).

Agora que eliminámos uma linha que era tão ténue que nem sabíamos que existia, entre o tédio e a religião, podem-se considerar humanos mais completos. Têm agora o conhecimento necessário para estragar o próximo Natal aos vossos petizes, marcá-los para a vida e, quando chegue a altura, garantir o vosso lugar no mais segregado lar de idosos da sociedade.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Nos Entrefolhos da Memória

Abril tem uma adaga cravada na minha memória, cheia de dor e ressentimento. Foi em Abril, que numa Feira em Sevilha, perdi uma das minhas amigas nos entrefolhos do seu vestido, onde nunca mais foi avistada. Partilho com vós esta experiência traumática para que nunca tenham de passar pelo mesmo. Ocasionalmente, ocorre em casamentos, mas é, principalmente, uma problemática recorrente na Feira de Abril na Andaluzia e ninguém aborda o assunto com medo das represálias.

Com o pé do seu pai cravado nos costados e as suas quatro primas a puxar das cordas do corset, não podia deixar de admirar o tom rosado magnifico que a falta de oxigénio lhe havia proporcionado. Que inveja! A minha família são uns egoístas que nunca dispensaram tempo para me sufocar. Finalmente, estava dentro do seu magnifico vestido vermelho com pequenas bolas negras. Parecia a noiva de um bolo de casamento de um casal invisual, onde as cores haviam sido um claro acidente do pasteleiro, mas tinha bolas suficientes para se ler em braille e isso era o importante.  Estaria dentro desse vestido as próximas dez horas, aproximadamente, tudo o que comesse ou bebesse poderia ser o seu fim, pois, literalmente, não havia espaço para erros.

O seu pai levantou-a como uma viga de madeira para a encaixar a pés juntos dentro dos seus sapatos, visto que agachar-se não era uma opção. Estava claro que iria de boca ao chão em poucas horas, mas valeria a pena. Colocou os brincos de plástico de mola, que pareciam parte de uma máscara de Carnaval e, finalmente, ajudaram-na a colocar uma enorme flor, também esta de plástico, na cabeça (todo o meu respeito àquele pescoço com força sobrenatural). Uma parabólica disfarçada de rosa, que tapava todo o penteado em que havia trabalhado por horas, mas proporcionaria Sportv e os canais de cinema a todos na festa. Estava pronta! Com tanta coisa em cima que já nem se lhe via a cara, mas certamente estaria linda debaixo de todo aquele carnaval de folhos e pétalas mutantes.

Levávamos já umas horas de festa e ela implorou por ajuda para usar a casa de banho. Pedimos resistência, pois não seria humanamente possível voltar a enchouriçá-la com tamanha precisão, mas ela não podia aguentar mais. Éramos cinco num espaço diminuto, cada uma puxava por um lado do vestido e havia folhos por todo o lado, pareciam cada vez mais, não nos chegavam as mãos! O silêncio. Onde estava? Gritámos por ela, lançámos-lhe cordas, mas era demasiado tarde. Havia sido tragada por uma tradição antiquada, um mau gosto ímpar e o repolho que levava na cabeça apenas lhe serviu de âncora.

Aprendam com o sofrimento alheio. Com as mãos no coração agradeço que este ano não haja Feira de Abril.

sábado, 25 de abril de 2020

Dando a Outra Face

Tempos de peso imensurável. Cravar na parede mais um dia passado em quarentena, suspirar perante as medidas dos governantes, recear pelo futuro a que seremos condenados e acima de tudo temer pelos nossos, que queremos a são e salvo. Tempos em que, como indivíduos e nação, espelhamos aquilo que somos, mas o espelho dos americanos parece estar embaciado.

Um presidente é o reflexo do seu povo, diriam alguns, afinal de contas, foram estes que votaram para este obter o cargo. A realidade é que conseguimos ver à distância quem votou em dita bola de plasticina laranja para presidente, normalmente, destacam-se pelas tatuagens supremacistas, bonés do Trump, ausência de dentes e bom senso. Todos os demais, que ficaram em casa e não foram votar em 2016, tiveram quatro anos para se arrepender.

A todos os energúmenos que ingressassem em hospitais por injectarem Cif para a veia depois dos conselhos do presidente deviam-lhes retirar, automaticamente, o cartão de eleitor e levar um par de lambadas, para que lhes saísse o Cif pelas ventas. Mas, dando a outra face, quem os pode julgar? São pessoas desesperadas que querem a sua liberdade e o seu presidente devia ser alguém em quem pudessem confiar.

Mudamos de canal e vemos que enquanto muitos se mantêm em casa e respeitam a quarentena, manifestações enchem as ruas de vários Estados, por motivos de força maior: os cabeleireiros e as lojas de fertilizantes para plantas estarem fechados. O Drama! O Horror! Invocam a gritos o cliché de que a América é a terra da liberdade e querem ter a liberdade de fazer uma permanente e cavar batatas. Trump em conferências e tweets congratula estes bravos que lutam pelo que querem. Se a OMS enviar esta gente toda para uma ilha qualquer na Antárctica com uma sandocha de atum, é o melhor investimento para a saúde de todos nós, mental e física. Mas, dando a outra face, quem os pode julgar? São pessoas desesperadas que querem a sua liberdade e o presidente não devia ser cheerleader de más condutas.

O presidente deixou que o responsável de cada Estado determinasse em que momento podem regressar à normalidade e, entretanto, que tipo de negócio é fundamental permanecer aberto na zona que governam, ao que parece, sem limitações nem questionar a sanidade mental de cada um. Temos, então, Estados em que os negócios e espaços fundamentais são: lojas de armas (bom truque psicológico: quem precisa de ter medo de uma pandemia, se há pacóvios armados em todo o país), pavilhões de wrestling (porque há que lutar contra a pandemia) e praias (de acordo com o presidente o sol queima o vírus)…é! O Estado de Florida consegue destacar-se, sendo um combinar perfeito de todas as más ideias de todos os outros Estados. Os próprios americanos começam a rezar para que Florida se descole acidentalmente do continente e parta à deriva com todos os seus habitantes. Mas, dando a outra face, quem os pode julgar? Acho que nós podemos, que somos pessoas desesperadas que já não têm mais faces para dar!

Queriam ver-se livres dos imigrantes? Queriam que os mexicanos pagassem pelo muro? Não se preocupem. Eles estão já a fazer as malas e vão encarregar-se de construir o muro no regresso a casa, para certificar-se que vocês não os seguem. Imagino os pobres nativo americanos a dar voltas na tumba de tamanha vergonha alheia, a pensar, e morremos nós para isto.

Desisto de ver noticias! Agradeço que me mandem um sms quando puder sair de casa ou quando tiverem instalado uma coleira de choques a Trump, para que ele leve descargas cada vez que diz baboseiras [pensamento exacerbado, que vou manter para mim mesma: antigamente os reis e presidentes caiam como tordos, e agora que é preciso, não há psicóticos com boa vontade].


Um bem haja e um feliz 25 de Abril a todos.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Recessão de Sonho

Caríssima entidade patronal,

Após reflectir, seriamente, quanto à oportunidade única que me foi dada de trabalhar desde o conforto do lar, venho por este meio comunicar, que estou capaz de matar uma cabra a grito (se me providenciarem uma cabra, terei todo o gosto de vos provar a veracidade desta afirmação por vídeo conferência).

Todas as manhãs ao toque do alarme, que eu carinhosamente esbofeteava repetidamente (o botão nunca parece estar no mesmo sítio, vicissitudes da vida) eu desejava poder trabalhar desde casa, pobre néscia era. Agora que compreendo as normas deste convénio, prefiro voltar a ver-vos ao vivo para que consigam experienciar, não só o meu olhar desaprovativo de tudo o que dizem, como consigam desfrutar dos efeitos sonoros proporcionados pelos meus eloquentes suspiros. Quem sou eu para vos privar do deleite da minha presença e de tal experiência sensorial?

As vídeo chamadas são o principal motivo para a ruína desta experiência social. Acho incongruente e anti natura a expectativa de me verem numa indumentária que não seja um pijama ou, o cânone cultural, que é a “roupa de estar em casa”. Diria, até, que é antipatriótico! Não podem fazer seminários de 8 horas e esperar que não coma, beba ou adormeça. Estou farta de ser julgada por pedir palavra a meio das conferências para comunicar que vou defecar, mas também me julgam quando desapareço sem dizer nada e, nem falemos, da vez que vos levei comigo para a retrete (continuei a olhar fixamente para vocês durante todo o processo, com inteira atenção, não compreendo o que mais querem de mim!). Dói-me cada vez que interrompem a minha sessão de zumba e, ainda por cima, duvidam da minha palavra quando garanto que estava a trabalhar no orçamento que me havia sido pedido.

Não sei que dia é hoje e, honestamente, enquanto não me ligarem vou fingir que é sábado. É, então, dia de reflectir sobre a vida. Concluí, que gosto de estar em casa, apesar dos meus glúteos terem agora vida própria e estarem tão grandes que se registaram para votar. Mas se estar em casa requer que tome banho, me maquilhe, vista apresentavelmente e tenha de fingir que estou com atenção ao que dizem, prefiro sair à rua!

Com desejos de soltura imediata, antes que coma o canário,

Cordiais cumprimentos.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Subsidiação de Estilo de Vida

Exmos. Senhores,

Venho por este meio felicitar a iniciativa, da qual tive conhecimento, em que vários países subsidiam a mudança de sexo a pessoas que provam estar a sofrer de uma limitação psicológica por terem nascido no corpo, digamos, errado. Gostava de vos apresentar o meu caso e espero que o tenham em consideração para futura subsidiação.

Eu nasci para ser uma dondoca e fui colocada, erroneamente, num cenário suburbano e operário. Eu não fui feita para laborar e estou a sofrer angústias terríveis. Todo o processo de acordar cedo e ter de efectuar...coisas…cansa! Já para não falar do bullying constante. Não há dia em que não me julguem preguiçosa e me escravizem em nome da produtividade proletária. Eu não pedi para ser colocada nesta posição! Ninguém me vê a apontar o dedo à débil desenvoltura dos meus progenitores com jogos de azar, que me poderia ter poupado esta vida repleta de tamanhas chagas. Gostaria, portanto, de candidatar-me ao vosso subsídio pois sofro de clara limitação psicológica por ter nascido num corpo errado, nomeadamente, de pobre. Saio bastante em conta pois gosto da minha genitália, mas gostaria ainda mais se ela estivesse agora esborrachada no divã de uma penthouse na Indonésia.

Fui diagnosticada pelo Google com uma doença terminal. Sofro de delírios quanto ao meu status e o meu estilo de vida opulente levará ao meu padecer, se não paro de chamar de pobretanas a transeuntes aleatórios, enquanto faço pontaria à testa dos seus rebentos com moedas de cêntimo. De acordo com o médico especializado que me diagnosticou, a única possibilidade de salvação é uma mudança drástica de estilo de vida e, caso vos sobrem fundos, ajudaria, à ansiedade de tamanha transição, um implante mamário de copa D.

Não temam, pois quero ser um membro activo na sociedade e quero trabalhar! Só peço, humildemente, um emprego no qual seja feliz, e onde o salário seja, proporcionalmente, inverso à quantidade de trabalho. Quero alcançar os pequenos luxos da vida, como não saber quantas assoalhadas tem a minha casa e nunca mais temer o fim de um rolo de papel higiénico (que resulta sempre naquele cenário degradante, de esticar-me na sanita para alcançar outro, que por algum motivo sombrio se guarda num móvel nada acessível), pois haverá sempre um novo, dobrado cuidadosamente em triângulo, por um jovem de quem nunca saberei o nome, porque não me interessa.

Caríssimos, sem vocês não conseguirei! Preciso do vosso financiamento para esta causa justa e de real importância. Ao contrário dos diamantes, a família Kardashian não é para sempre e, na sua ausência, alguém precisa colmatar todo o vazio que a sua existência aporta ao mundo. Eu sou a vossa pessoa.
Cordiais cumprimentos.

 
[Uma ode às grandes empreendedoras da vida, como as Kardashian, a quem não falta genitália para mendigar. Perante as brumas da memória de que uma delas criou um crowdfunding para ser a bilionária mais jovem do mundo…e ter conseguido]

domingo, 19 de abril de 2020

Têm Oito Saídas de Emergência

O horizonte vislumbra-se ao longe, incidindo sobre ele, raios de luz que parecem divinos. Agradecemos aos céus a sorte que temos, abrimos os braços de rompante para planar sobre as nuvens que nos rodeiam. Apercebemo-nos, então, que estamos num avião e esticámos uma bofetada à hospedeira que, garantidamente, irá cuspir em todos os refrescos que me sirva nas 12 horas de viagem que ainda faltam.

Entrar no avião e cumprimentar a hospedeira de monho perfeitamente centrado, que repete ritmicamente saudações como se tivesse sido programada para autodestruir-se se um passageiro não se sente bem-vindo. Indica-me o lugar, com um olhar de agradecimento, quando observa que não entro a bordo com trigémeos recém-nascidos. Pedi lugar à janela, não pelas vistas, mas para evitar que a clássica senhora de fato de treino nos tente passar por cima a cada dez minutos para esticar as pernas, glorificando as suas varizes, como um memorial a veteranos de guerra. Olhamos para os passageiros a entrar, como se um desfile se tratasse, rezando, mentalmente, que não fique ao nosso lado um ser da lista negra: bebés (ou qualquer ser que supere os decibéis concebíveis ao ouvido humano); pessoas que não respeitam as leis de convivência aérea (como: a pessoa sentada no meio tem o direito legal aos dois apoios de braço); pessoas que não foram cordialmente apresentadas a nenhuma marca de desodorizante; indivíduos a quem a companhia aérea devia ter proporcionado dois lugares, mas o capitalismo não o permitiu, transbordando dobras de pele por encima dos apoios de braços.

É hora de voar e não questionar como aquela carrinha com asas vai chegar ao seu destino. O importante é que foi barato e há bar aberto durante todo o voo. A hospedeira começa a fazer a demonstração de segurança e todos os passageiros fingem que estão ocupados, excepto eu, que com o olhar mais penetrante e desconfortável, a olho fixamente. Isto, porque sei, que a minha vida pode depender desses minutos de atenção. Não caso o avião caia, porque aí estamos todos mortos (que isto não é o Lost), mas porque sei, que é uma questão de tempo até que uma hospedeira perca as estribeiras, saque de uma metralhadora e dê cabo de toda a gente que fingiu estar a dormir nos seus dois minutos de fama. Isto, enquanto eu como M&Ms no cockpit, cortesia da casa, por bom comportamento.

As mordomias de ter alguém durante doze horas a trazer-me comida, bebida, mantinhas, e almofadas, enquanto desfruto de filmes que ainda não estão no cinema (nem nunca vão estar), é um luxo! Está bem que, passado um par de horas, quero cortar as pernas de tão inchadas que estão; quero empalar a velha do assento da frente para que deixe de testar os limites da cadeira reclinável; e estou farta de evitar a unhaca do dedo do pé do senhor do acento de trás que, como um idoso de gabardina sem nada por baixo, espreita sorrateiramente entre a janela e o meu banco, aguardando o seu momento de glória. Mas vale a pena (porque não estamos sóbrios quando nada disto passar)!

Aterramos, sinais de cintos ainda acesos, mas toda a gente, que aguentou 12 horas sem tugir nem mugir, precisa de se levantar assim que as rodas embatem no chão, como suricatas em êxtase. Chega o momento de sair, despedir da hospedeira que olha fixamente o vazio, questionando a sua escolha profissional, e concluir que temos tempo de constituir família no terminal do aeroporto antes que cheguem as nossas malas.

Não há nada como viajar.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Amor: À Direita a 400 Metros

Era uma vez, contavam-se histórias de felicidade, conquista, príncipes e princesas. Histórias que conduziram tantas infâncias e criaram as fundações de muitos, como eu. Com um sorriso no canto dos lábios, recordo as horas investidas nestes contos e pergunto-me o que raio teriam os meus progenitores na cabeça. Fizeram-me crer que é perfeitamente plausível que um príncipe encantado seja um mentiroso compulsivo; beije defuntas que encontra por aí esparramadas, enquanto dá um passeio para esticar as pernas; que um fetiche por pés faz dele interessante; e que ser feita prisioneira por um fulano com acentuada falta de higiene pessoal, é razoável desde que ele seja rico. Depois, perguntam-me o porquê do meu cepticismo quanto ao amor.

O Tinder é uma aplicação criada para encontrar o amor (de umas horas, se tiverem sorte). Eu sempre me acusei como incapaz de, sequer, considerar a possibilidade de usar uma aplicação para encontrar, nem que seja, um engate. Chamem-me antiquada, mas cresci com histórias de princesas com claros problemas psicológicos e vi demasiados filmes de terror. Levar um desconhecido para casa, na minha cabeça, não terminará em algo que não seja o meu desmembramento (e não de uma maneira sexy).

Se uma aplicação vê a necessidade de criar um botão de emergência, isso, devia ser para os seus usuários, uma chamada de atenção vermelha, com holofotes, fogos de artificio e uma senhora gorda a cantar ópera. Mas, vamos assumir, que chegou aquela altura da minha vida em que decido participar activamente no meu homicídio assistido. Acho, que o mínimo que a aplicação podia fazer era facilitar-me a vida, mas não, preciso descrever-me numa frase e encontrar uma foto decente. É mais fácil que Deus fale comigo para construir uma arca! Não tenho experiência nisto! Não sei se com uma frase como “gosto de passeios à beira mar e não ser degolada” ia chamar muito à atenção.

Gosto do amor à moda antiga. Conhecer alguém num local público (testemunhas), onde posso avaliar se tem um tamanho que me permita dar-lhe um KO técnico e fingir que sou doce, ao fazer-lhe umas cócegas em algum momento da conversa, para avaliar se tem pontos fracos e, acima de tudo, se tem uma arma na algibeira (nunca se julguem demasiado boas para um assassino medíocre, nem a todas nos pode calhar um serial killer artístico que não recorre a armas).

Encontrar o verdadeiro amor exige trabalho e atenção aos detalhes. Não há nada como o eliminar de potenciais caras-metade por detalhes fúteis que não admitimos em voz alta, mas nos fazem ver que aquela pessoa não é para nós. Aquela patada na gramática, que repete uma e outra vez como se nos quisesse ver sangrar dos ouvidos, que cordialmente, tentamos corrigir ao repetir bem dito e só nos serve para o ver a dar outro rotativo na boca a Camões; aquele tom de voz agudo acompanhado de um arrastar sopinha de massa; aquela corrente de ouro a sair da farfalheira do peito; ou aquela gargalhada estridente que parece uma morsa em cio. Todos estes exemplos, que partilho dos meus traumas pessoais, em prol da vossa busca pelo amor, foram casos de minutos, sem me desperdiçarem tempo (sem conversa da chacha de cores favoritas, trocas de fotos e intenções, e possível investimento em jantares). Pensem nisso a próxima vez que deslizarem esse dedo para a direita.

Este foi um serviço público do Ministério da Busca do Amor nos Sítios Errados, com apoio do Departamento de Traumas Infantis.

terça-feira, 14 de abril de 2020

O Preço da Arte

A 28 de Dezembro de 1895, no Salão Grand Café, em Paris, os irmãos Lumière partilhavam com trinta privilegiados, os frutos do seu trabalho. Deram-se, assim, os primeiros passos da recém-nascida Sétima Arte. A utilização de numeração surgiu da crença que não iríamos estagnar e, em coisa de dias, surgiriam inúmeras outras artes (mas aqui se reflectem os efeitos de crianças a snifar cola durante tantos anos). Nos dias que correm são 11 as “Artes” (alguns, metem à pressão outras duas para justificar o seu estilo de vida artístico, frequentemente referido como: desemprego), sendo, a décima, os videojogos. Afinal, todos vocês têm artistas em casa e não sabiam. Quantos Mozarts dos videojogos terão perdido a sua oportunidade, à conta da sua rica mãezinha, sem sensibilidade alguma e preocupada com frivolidades, como dormir ou mover os membros inferiores a ver se ainda são funcionais.

Foquemos-nos no importante: a Sétima Arte. Actualmente, de tão fácil acesso, mas ainda com a vertente de luxo, que é ir ao cinema. Fazer uma chamada ao vosso gestor de banco é recomendável, antes de desfrutar de um filme num espaço compartido com desconhecidos, onde temos de sincronizar a nossa bexiga com o momento incerto do intervalo. As entradas, mesmo em lugares que seriam equivalentes ao porão do Titanic, são de preços elevados. Porém, ninguém vai ao cinema sem comprar as típicas pipocas e bebida para acompanhar, disponíveis em vários tamanhos, desde “Já acabaram e ainda nem começou o filme”, até “Vou levar os restos para casa e temos pipocas até ao Natal, mas na realidade só duram uma semana, até meterem nojo e começarem a ganhar cores e consistência duvidosa, e irem parar ao caixote do lixo, enquanto gritamos que para a próxima já sabemos”. Estas, podem ser compradas em combos poupança como os intitulam, ou, facilmente, intercambiáveis na bilheteira, pelo seu rim ou descendente varão primogénito.

A realidade, é que uma ida ao cinema pode ser um investimento perdido, pois não depende apenas de nós o desfrute de tal serão (se pagaram para ver um filme do Vin Diesel, já estavam a pedir desgraça, não se queixem). Há toda uma panóplia de personagens secundários, que por muito vazio que esteja o cinema, eles aí estarão, como que se contratados pelo cinema para criar ambiente. O espectador que insiste em cegar-nos com a luz do seu telemóvel a cada 10 segundos, enquanto verifica se o mundo não ruiu sem a sua participação activa; o que para poupar em pipocas enfiou pacotes de batatas e doces em todos os orifícios e passa o filme a vasculhar os bolsos, sacudir o casaco e explodir pacotes de batatas, como se fosse apanhar as batatas de surpresa e estas não tivessem tempo de fugir e deixar meio pacote vazio; o que insiste em dar o seu parecer ao actor do outro lado do ecrã, avisando-lhe cada vez que o assassino está perto e, genuinamente, irritando-se quando o Tom Hanks não ouve os seus conselhos; o que (por não sabermos, convidámos, mas, se são espertos, nunca mais) gosta de relatar o filme como um jogo de futebol…estamos a ver o mesmo ecrã, ao mesmo tempo, mas nada o impede de explicar o que está a passar como se tivéssemos a actividade cerebral de um repolho… e sim, vi aquilo, sim! Aparte deste grupo de indivíduos, a entrada a pessoas sensíveis deveria ser interdita. Ir ao cinema deveria ter certas provas de aferição, onde pessoas que mostrassem sentimentos através de sons, como, “awww” ou fungar em voz alta, automaticamente, não só não entrariam, como não teriam reembolso do bilhete para aprender. Aguentar alguém, atrás de nós, durante duas horas, a guinchar num filme de terror e sorver macacos num drama, é mais aflitivo que dar com o mindinho do pé na esquina da cama.

O cinema perfeito é em casa, com possibilidade de comer alegremente sem chatear ninguém, parar vinte vezes porque a incontinência é algo que vem com a idade, mudar de filme aos cinco minutos de mau que é e ter acessível uma almofada para abafar os ronquidos da companhia.


sexta-feira, 10 de abril de 2020

Hércules, o Senhor dos Anéis

Era uma vez, há muito, muito tempo (mais exactamente: nunca), nasceu um dos primeiros engodos plantados por um humano para tentar subir na vida. Alcmena, deu à luz Hércules, filho do todo poderoso Deus Zeus.

Conta a lenda, que Hércules após ter completado doze trabalhos (coisas reles de comuns mortais, como estrangular o maior leão do mundo, matar a Hidra de Lerna que era uma jovem com má genética e brincar ao apanha com uma corça), dedicou-se a construir um estádio olímpico em honra a Zeus. E, assim, da mão de Hércules, nasceram não só os Jogos Olímpicos, como a definição de daddy issues (busca de aprovação do progenitor com quem houve alguns percalços), e a arte de fazer o currículo para a tua primeira experiência laboral (duas páginas a encher chouriços com os doze “trabalhos”, não remunerados, a que o teu pai te obrigou e que não duraram mais de meia hora).

Há séculos atrás, senhores enrolados em lençóis estrategicamente colocados, deram origem ao grande evento representado, nos dias que correm, por cinco anéis que se entrelaçam em representação de uma união utópica. Este evento une-nos, inexoravelmente, na prática de fingir que nos interessa e, como tal, causou-nos irremediável tristeza saber que havia sido cancelado este ano. Noites sem dormir com tamanha desilusão, eu sei. 

A verdadeira tristeza deve ser, não só, dos japoneses que investiram mundos e fundos na construção de infraestruturas, mas também dos desportistas que treinaram sem cessar para se consagrar os melhores do mundo nestas provas. Dá-me pena, mas apenas dos desportos a sério. Sejamos realistas, há desportos que seguiram o raciocínio de Hércules, ao embelezar tarefas mundanas para parecer que têm um trabalho ou uma aptidão especial.

A realidade é que nem todos sabemos mergulhar com um salto carpado à retaguarda com três piruetas (eu só sei escorregar na beira da piscina a tentar descer as escadinhas metálicas e deslocar um braço no processo). Estes atletas são artistas! Mas, a realidade, é que nem todos os atletas são reconhecidos. A campeã mundial de marcha é, notoriamente, a minha tia Marta, que é mais manca que uma britânica de saltos altos a descer a calçada da Bica e é vê-la correr para apanhar o 190 em hora de ponta para a Charneca da Caparica. Mas alguém lhe dá valor? Não. Eu esfrego o chão cá de casa como se quisesse tirar a cor ao cedro, e alguém me vê na equipa de Curling das Olimpíadas? Não. 

Não sei em que contexto estes “desportos” foram criados e, muito menos, considerados algo mais que existir. Poderíamos omitir por completo estes desportos secundários e usar esse tempo de antena para algo na linha de qualidade dos Jogos sem Fronteiras. Cada país teria de tirar nomes à sorte de cidadãos e estes iam representar-nos. Mesmo em fusos horários opostos, eu garanto-vos que acordaria às 4 da manhã para ver: António o taxista alcoólico, a competir lado a lado com, Serafina do talho a quem tanta laca criará cegueira, vestidos de pastel de nata a esquivar (sem motivo aparente) bombas atómicas de esferovite a serem lançadas pela equipe oposta.

Deixemos de investir tempo e dinheiro em actividades mundanas. É altura de dar azo à nossa imaginação e inerente impulso de ridicularizar a sociedade em que vivemos, mas com uns saltinhos lá pelo meio, para justificar a componente desportiva.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Here Kitty Kitty

A calma tangente à emoção. A brisa joga alegremente com as folhas caídas, parece, perante tal silencio, presságio da violência que se segue. Há ambientes nos quais não se quer ouvir a brisa. Na savana, seguido do silêncio, ecoará o rugido da selecção natural. Nos Estados Unidos a selecção natural ainda é um processo em fase de desenvolvimento, mas nada que um par de rugidos não pudesse resolver.

A série Tiger King expõe as actuais leis dos EUA (ou sua ausência) que, deram origem, a que em território nacional haja mais do dobro de felinos de grande porte em cativeiro, que em liberdade em todo o mundo. Um assunto interessante, já para não dizer assustador, que vos faz começar a ver o documentário pelos tigres e acabar pelo folclore dramático. Não há nada como um pacóvio homossexual, com um mullet loiro a ornar-lhe o crânio, que quer ser presidente e tem sempre a seu lado jovens heterossexuais que mudam de orientação sexual por amor (à heroína), para representar os EUA e ser a cara deste documentário. De nome: Joe Exotic – The Tiger King.

Um documentário que leva a personagem da “senhora louca dos gatos” a um patamar totalmente diferente e levanta questões pertinentes em relação aos custos da Odontologia nos EUA, para que saia mais em conta ter 200 tigres que 32 dentes. Perguntas que tinham vergonha de expor, como, “serão os americanos estúpidos?”, “será boa ideia expor nas redes sociais os meus desejos homicidas?”, “como seria um videoclip do Kid Rock a cantar sobre tigres?”, terão resposta neste documentário.

Tigres, sexo e drogas. De membros amputados a massa encefálica projectada em paredes, tudo serve de adorno num documentário em que o elenco parece ter sido lobotomizado com uma picareta de gelo. Grupos intermináveis de voluntários, absortos nos discursos de indivíduos com transtornos de personalidade narcisista, a doar anos de vida, literalmente, em troca de uma festinha num tigre.

Horas de cenho franzido e boca entreaberta em descrer, é o que vão obter da visualização desta “obra”. Podem culpar o tédio por ver esta série, mas no fundo sabem que a viram do começo ao fim porque é como desviar o olhar num acidente de carro, há uma força maior que se materializa numa mão gigante que nos vira a cabeça e nos abre as pálpebras à chapada. Em cada episódio, surtos bipolares, entre aceitarmos que está a ser um mal aproveitamento de quarentena, seguidos de gritos amorfos expelidos contra a Carole Baskin (uma hippie cheia de olho para o negócio que, claramente, usou o marido para palitar os dentes dos seus tigres).

O importante é absorver toda a moral que este documentário nos aporta: as leis dos EUA foram revistas por babuínos em ácidos; e digam não às drogas (e a qualquer penteado dos anos 80...eles também estavam todos em ácidos).

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Coelhos de Ouro

As badaladas ouvem-se à distância, uma multidão parece aproximar-se como se da marcha imperial se tratasse, todos os passos com a mesma força e intenção. Parecem marcar o ritmo das vozes que os acompanham. Parecem chorar. Outra Semana Santa à porta e a minha bênção deste ano é não ter de estar em Sevilha.

A Páscoa, tanto quanto sei, é a época em que a Kinder faz ovos de chocolate do tamanho da minha cabeça e qualquer coisa aconteceu a um senhor que está na bíblia. Como se relaciona o último, com coelhos portadores de ovos de chocolate, ninguém sabe.

Por motivos laborais, fui enviada para Sevilha onde vivi dois anos. A cidade tem efectivamente uma cor especial, não identificada e não apta para todas as íris. A Semana Santa representa o apogeu desta cultura que congelou há 200 anos, em simultaneidade, com a necessidade de fritar tudo o que ingerem com medo de se contagiarem com varíola.  Durante a Semana Santa não há tempo para desfrutar de uma orelhinha de coelho de chocolate, pois há procissões as 24 horas do dia. Juntam-se multidões de nazarenos (indivíduos que se vestem como os KKK...tudo muito bonito e nada assustador…podia ser o começo de uma trilogia de filmes de terror dos que vinham em VHS numa só caixa...mas perfeitamente normal e agradável), entoam-se cânticos e há gente a mandar chapadões no peito capaz de causar problemas cardiovasculares. Todo um sonho! Um sonho, que nos faz alargar um trajecto, normalmente, percorrido em 5 minutos para uma hora, com ofensas por atravessar a procissão e, ocasional, crucifixo arremessado contra a nossa cara.

Esta semana é preparada durante todo o ano. Os santos são pintados de fresco (muitos banhados em ouro doado pelas famílias da confraria) e os costaleros (que são literalmente os que levam os santos nos costados), que esperam anos por tal honra, rezam para que esse seja o ano de desenvolver uma abençoada hérnia. 

Pagam-se rios de dinheiro à congregação, à cidade e ao alfaiate para poder fazer parte da procissão. O clímax alcança-se ao receber a antecipada chamada do banco (típico a todos os residentes nesta altura), a perguntar se estamos interessados num empréstimo, para, quiçá, poder alugar uma das cadeiras de madeira em frente à catedral (sou a única que é abalada pela ironia de celebrar uma ocasião associada a uma crucificação em cruz de madeira, esparramados ao sol numa cadeira de madeira?). Mas quem é que precisa de um empréstimo para a casa quando pode desfrutar do conforto de uma fabulosa cadeira de madeira desdobrável, com térmitas com idade para ser tuas filhas, durante 15 minutos pela módica quantia de 2000€?

Ponhamos as coisas em termos claros: Jesus tinha, digamos, superpoderes e ressuscitou, o que o ilibou de qualquer divida que tivesse com o padeiro e vinicultor da altura. Porém, vocês são meros mortais, não há cá Paixão que vos salve, a Morte é uma maçada e se Ressuscitarem, nem que seja como cães, se tinham dividas, os bancos vão-vos encontrar e empenhar a vossa ração para a vida.

sábado, 4 de abril de 2020

Autoajuda Mercenária

Sombras na penumbra que parecem perseguir-nos. Uma brisa parece suspirar ao nosso redor, quase murmúrios do mais além que parecem querer assustar-nos. Uma pressão no ar, uma tensão indescritível que me faz afundar os joelhos. Os ninjas ou shinobi eram agentes secretos ou mercenários do Japão feudal especializados em artes de guerra não ortodoxas. As suas funções incluíam espionagem, sabotagem, infiltração, assassinato e guerrilha assim como combate aberto em determinadas situações. Actualmente, eles estão em todo o lado e são tão bons na arte do disfarce que os que se aperceberam e abordaram o assunto desapareceram misteriosamente. Os ninjas são, actualmente, conhecidos como Mulheres.

O olhar gélido de uma mulher na nuca inofensiva de um homem é o suficiente para que ele deixe de sentir as articulações e que todos os seus sonhos desvaneçam. Anos de coabitação já deveriam ter ensinado ao sexo masculino a ter cuidado com este género. Não vos parece de suspeitar o sistema de ir à casa de banho acompanhadas? Não vos parece de suspeitar que determinem quem é a sua melhor amiga pelo resposta à pergunta: “se matasse alguém a quem é que ligava para me ajudar com o corpo?”? Não vos parece de suspeitar que acordem bem dispostas e por algum motivo, inexplicável, queiram pegar fogo à casa quando vislumbram uma partícula de pó a pousar no parapeito da janela? As mulheres são sociopatas e se vocês ainda não aprenderam isso, merecem todas as tardes de discussão que começaram sem vocês darem por elas, que a vida vos presenteie.

As mulheres estão num permanente grupo de autoajuda. Há sempre aquele número de emergência a quem ligam em caso de recaída. Pontualmente (em particular durante uma semana ao mês), sem motivo aparente, as mulheres têm surtos homicidas para com os seus parceiros. Para garantir que a sociedade mantém o seu equilíbrio, as mulheres ligam ao seu apoio (outra com problemas tão maus ou piores que ela), e explicam toda a panóplia de motivos que têm para odiar a humanidade, a genética e a gravidade. Esta, por sua vez, responde em gritos de compreensão, atormentada pela falta de sensibilidade masculina, projectando igualmente os seus próprios problemas. Esta troca de informação não serve na prática para nada, mas acalmam ambas partes. Tal como verificar a pressão dos pneus periodicamente, este ritual é necessário para evitar acidentes.

As mulheres são seres altamente complexos. Para sobreviver a um ataque furtivo de uma só têm que aceitar duas verdades: haverá certos dias em que qualquer pergunta que façam, é uma pergunta estúpida (quem disse que não havia perguntas estúpidas, não foi, de todo, uma mulher); vocês ficam muito aquém do material que foi apresentado no período pré-relação, que é, na verdade, uma prova gratuita de 30 dias da versão premium que não temos dinheiro para comprar.

Agora ide lá aguentar mais um dia de quarentena com a cara metade.

Um bem-haja.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Não Tujo nem Mujo

Era uma vez, numa terra não muito distante, onde o sol beija a costa e o luar anuncia o manto de estrelas que o acompanha, um cavaleiro galopava no seu cavalo alado em direcção à sua prometida. Tão perto, que já sentia o aroma a flores do seu longo cabelo avelã, o cavalo tropeçou e o cavaleiro esborrachou-se contra uma vaca. Nesse momento, sentindo a vida a escapar-lhe entre os dedos, provando-se esta tão volátil e tal morte tão patética, decidiu lutar com toda a força que lhe restava. Prometeu, assim, aos deuses que não comeria mais carne. E, desta forma, surgiu o primeiro vegetariano (história baseada em factos verídicos – facto 1: houve cavaleiros; facto 2: há vegetarianos; facto 3: há vacas e não têm bons reflexos).

Vivemos numa época com tantas orientações dietéticas como sexuais. Se eu decidir só comer ervilhas até ao final dos meus dias, acho que ganho o direito de nomear a minha orientação dietética, mas não peçam a toda a gente que siga a par da incomensurável quantidade de títulos existentes (a metáfora das ervilhas serve tanto para o lado sexual, como dietético, por favor o Tinder já supera as 35 opções, eu perdi-me para aí na quinta).

Nunca equacionei a possibilidade de me tornar vegetariana, quanto mais vegana. A utilização desmesurada de gritos de guerra com o intuito de incutir culpa, apenas fizeram a claque oposta procurar novos argumentos para atirar por terra todas as suas teorias, por muito válidas que estas fossem. Até que surgiu o filme The Game Changers. E eu fui vegana durante quase uma hora (não podia ser mais porque tinha deixado um bife a descongelar antes de ver o filme). Por incrível que pareça não foi ouvir o Arnold Schwarzenegger que me fez mudar de ideias (este homem comia mais ovos antes de sair da cama pela manhã, que eu comeria em três vidas, por isso se agora só come repolho até ao fim da vida está no mínimo a equilibrar o seu estrago), mas sim a abordagem lógica, histórica e cientifica pela qual optam.

Entrei supermercado adentro com a postura de alguém determinado em fazer mudanças. Sem dar por isso, eu era a Carrie Bradshaw da zona refrigerada. Era embalagem vegana atrás de outra! Toda eu era glamour a fingir que percebia o que estava a comprar, mas, tinha de provar tudo, da coisa aquela que finge que é frango, à outra coisa aquela que finge ser terra arada (depois de provar, acho que não era a fingir). Algumas coisas surpreenderam-me pela positiva, outras, elucidaram-me quanto ao que saberia um pedaço de cartão rórido encontrado debaixo do banco do condutor de um Citroen em segunda mão, mas com um toque a caril.

Sei que arrisco a que não me deixem passar a fronteira quando quiser voltar a Portugal, por aquela hora em que pensei que podia viver à base de cenouras e boas intenções.  Actualmente, continuam a deixar-me nervosa as pessoas que pedem saladas no Mcdonald's e a achar hilariante os anúncios de senhoras a rir enquanto comem saladas (não há nada como o sentido de humor de uma cebola). Não obstante, estou disposta a ser enganada por um pedaço de carne falsa um par de vezes à semana.

[Agora durante a quarentena nada de isto se aplica, ela é bolos, ela é bolas inteiras de queijo, ela é aquele Cheeto encontrada entre as dobras do sofá. Neste momento o tofu até pode mugir que não me passa pelo estreito]