sábado, 30 de maio de 2020

Branco Nuclear

Tom moreno, beijado pelo sol, que emana todo o calor e alegria do Verão. Guardo com carinho os anos de pele quente ao sol e cabelo que aclarava com a força do Verão. Hoje, a minha composição é definida pelo atraente tom de branco-defunto. Um branco pálido que daria inveja a qualquer folha A4 pronta a ser impressa.

Viver na Holanda é sinónimo de nos atirarmos ao chão da sala quando um raio de sol penetra a janela, para sugar 5 minutos daquele centímetro quadrado de alegria. Aqui dá-se muito valor aos dias de calor e as pessoas saem à rua de garrafa de vinho em punho e rumam para os parques no centro da cidade onde, sem água onde mergulhar, vão estar de biquíni posto até as dez da noite. Quem não tem cão, caça com gato, já dizia o outro. Aqui há praias, mas tendem a ser algo ventosas e a água, ai jesus a água, é a sensação térmica de enfiarmos a cabeça num granizado e perder o nariz, toda uma experiência que podemos desfrutar graças a um mero segundo dentro de água (sim, cai-vos o nariz se metem o dedo gordo do pé na água, um fenómeno fabuloso).

Eu idolatro o espírito dos holandeses e a maneira como dão valor ao sol, como portuguesa sempre o tive como garantido, mas agora compreendo. Se há sol, vão-me ver a comer na rua, nem que seja à beira da estrada à chapada com uma gaivota e a levar com gravilha na testa. Preciso de sol e nem é tanto pela vitamina, mas pelo aspecto moribundo que tenho, vejo as minhas veias com mais clareza que nos livros de ciências. Não sabia que o grau abaixo do branco era o invisível, mas isso parece.

Auto bronzeador não é uma solução para alguém como eu. Não poder tocar em nada durante horas, ter de trocar lençóis e, depois de tudo, correr o risco de parecer uma zebra, parece-me muito trabalho para ser confundida com a prima afastada de um cavalo. Solários? Devo ter sido um leitão da Bairrada noutra vida, tenham paciência, mas o conceito cria-me calafrios. Como última opção poderia escolher uma cor bonita e tatuar-me de cima a baixo no mesmo tom, seria inovador, consistente e provavelmente tão doloroso que desistiria depois de um pé moreno.

Com determinação, lutarei com holandeses pelo meu lugar ao sol, pois parece a maneira mais económica e menos trabalhosa de ficar morena. Irei colocar todo o meu empenho em ir de indumentaria diminuta para um parque, onde todas as minhas forças serão empregues em esparramar as minhas pregas pelo relvado, com precisão e arte.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Um Espirro Por Um Funeral

As crianças são criaturas inocentes, cheias de alegria e sonhos maiores que o mundo, cuja coordenação motora e raciocínio lógico nem sempre estão aliados, criando queixos esfolados, joelhos negros e egos destruídos. Considerando que sou um ser que, desde pequena, tropeço na chuva e escorrego no ar, cedo percebi que de pouco servia chegar a casa e queixar-me às entidades grisalhas. Por cada dedo que partisse, tinha de sucumbir à história em como a minha avó tinha partido os dois braços a estender a roupa num dia de verão em que fez demasiado vento. Lascar um dente era sinónimo de vê-la a sacar da placa e me a enfiar olho adentro (foi o começo da minha primeira conjuntivite, quase que ficava cega, mas não me queixei), para mostrar como não tinha nenhum e estava rija. Tudo aquilo do que se possam queixar até a uma certa idade, vai ser superado com esplendor por qualquer idoso. Isto, porque, vos levam cem anos de avanço, ou estão senis e acreditam que fizeram parte do império egípcio e andavam a carregar calhaus às costas para bel-prazer de César.

No dia em que sai de casa calculei que esta fase havia passado, sabendo que um dia seria eu a que arremessaria o seu olho de vidro à cabeça do meu neto insolente, quando ele se queixasse de ser míope. Porém, o descanso do guerreiro não passava de uma miragem. Não houve intervalo na fase do queixume e os meus pais nunca me alertaram com medo de que eu nunca saísse de casa. Arranjei um homem!

Os elementos do sexo masculino têm em si, durante toda a sua vida, algo de veterano de guerra sociopata com lepra sazonal. Eu caminho em casa como se de um pequeno pónei me tratasse, é só magia e confettis, nunca me dói nada. Não importa se uma doença se transmite por contacto físico, via respiratória ou voodoo, os homens apanham tudo por osmose. Não estou destinada a sentir o glamour de me doer um dedo, nem a alma, sem ter que meter compressas frias na alma de outro.

Infelizmente, tive algumas relações fugazes, mas intensas, com a minha retrete ao longo dos anos e as dores que tive, proporcionaram-me momentos de júbilo existencial, equivalentes ao senhor do filme América Proibida que come o lancil. Inúmeras vezes pensei vislumbrar a minha oportunidade de ouro. A personagem masculina aproxima-se como um cavaleiro alado, os meus olhos lacrimejam de emoção, agarra-me nas mãos com ternura, tosse duas vezes, cuspe para a pia e toma a decisão administrativa que vai morrer se não tomar soro nesse mesmo instante.

Esta é a história da reforma antecipada da minha esperança de poder queixar-me de dores. Agora compreendo porque é que não tenho memória da minha mãe doente, pois se ela espirrasse, lá teria de levar o meu pai às urgências.


sexta-feira, 22 de maio de 2020

Oração da Noite

Querida Santinha dos Labores Que Não Enriquecem Nem a Alma,

Dai-me forças para não esbofetear incessantemente a minha entidade patronal. Já não sei se são dias, semanas ou meses a formar novas rugas da incredibilidade por cada palavra que profere. Não o julgo querida santinha! Assumo que tenha caído de cabeça de um terceiro andar quando era criança e tenha batido nos estendais de todos os andares a caminho do chão. A verdade é que as minhas sobrancelhas já me tapam os olhos de tamanhas pregas, de horas de sobrolho esticado aos céus, e a parte inferior da minha cara foi vítima de paralisia, ficando o nariz arrepanhado num dos lados e a boca levemente aberta em descrer, da repetição da minha cara de “estará a brincar? Estará drogado? Estarei a ter um AVC?”.

Penso como terá chegado a este posto, por talento não foi certamente, será primo de alguém? Não que ninguém ama assim um primo. Será que foi a típica ascensão por senioridade na companhia? A menos que queiram ter alguém a quem culpar quando a companhia ruir perante os seus olhos, não vejo o propósito.

Comportei-me, dei-lhe tempo e orientação para crescer como ser humano, mas não posso mais. Sonho com ele a ser alvo de treino dos Pauliteiros de Miranda. A quarentena roubou-me o poder de fingir que me importo e agora quando ele fala eu procuro alguma mosca que me entretenha. O telefone toca e eu tenho de filtrar a raiva em gritar exasperadamente, antes de atender com um (plausível e profissional): “Quê?”.

Preciso da tua ajuda santinha, que já me culpei a mim, mas nem eu acreditava nisso. Agora encontrei um grupo de almas tão perdidas como eu, que não o suportam, e vejo isto a descambar rapidamente.

Lanço as mãos ao céu em louvor a todas as almas com entidades patronais que não são completos energúmenos. Agora deixe de se dar palmadinhas nas costas e de jogar poker online cara Santa. Ponha um bocadinho de dedicação no meu caso, que já levo um par destes chefes e a meu ver tem você favoritismo por alguns dos seus crentes. Não ando eu para aqui a rezar para que você esteja a ler a Maria divina.

Que a força esteja consigo (ou como quer que seja que se acaba uma oração).

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Império de Fita Adesiva

O fino salto alto aferrasse ao soalho, como um metrónomo a marcar o ritmo, sente-se a identidade feminina a ressoar em cada passo. Giro a cabeça e suspiro exasperadamente, como quem salta um batimento cardíaco. Aquele corpo de porcelana com medidas perfeitas, movendo-se com uma harmonia que me faz trautear a Garota de Copacabana. Será isto inveja ou um teste à minha heterossexualidade? Oiço, então, um cavalheiro a perguntar-lhe qual a sua graça, respondeu com o tom de voz de um pai natal ébrio a trabalhar em part time num centro comercial: Joaquim.

Temendo não ter as qualificações necessárias para o trabalho, tomei a decisão que quero ser uma Drag Queen. Tenho consciência que o conceito passa por homens que se vestem e actuam como mulheres e eu sendo uma, poderia ser subentendido como batota, mas quem me conhece, sabe que a minha maquilhagem tem o traço artístico de um desenho indecifrável de uma criança de 4 anos (sim, aquele que guardam e fingem que é lindo, mas por dentro pensam que mais vale que o catraio cresça para ser bonito ou inteligente, que artista não vai ser) e ando de saltos altos, como uma mula em andas na calçada portuguesa, a tentar apanhar moedas do chão com a boca. Mas, atenção, não quero ser uma Drag Queen matrafona que para isso fico quieta, quero alcançar um nível que faça ambos os sexos duvidar da sua sexualidade, ao não saberem o que raio eu sou. O suprassumo dos jogos mentais femininos.

São mulheres de tomates. Efectivamente. Anos a melhorar as suas maquilhagens, vestuários e a arte de levar a genitália colada com fita adesiva entre as pernas, muitas vezes, durante mais de 10 horas. Eu não consigo nem empurrar a minha hérnia para dentro, que fique quieta por cinco minutos e estes homens, fazem desaparecer um conjunto de órgãos para lugares nunca antes explorados. Levem um grupo de mulheres a um striptease em que o stripper dispa a tanga e o homem é apedrejado por atentado ao pudor, enquanto elas convulsam com arcadas (ninguém quer ver aquela coisa a bambolear por aí livre). Mas, se ele saca de um rolo de fita adesiva e faz a genitália desaparecer, até o viramos do avesso para compreender onde foi aquilo parar. O mundo Drag gera-me tantas perguntas! Seriam histórias dignas de ser contadas junto à lareira, a mulheres que tiram apontamentos fervorosamente, sentadas de pernas cruzadas num tapete felpudo.

Poderia, finalmente, sair dos cânones de nomes cliché e ter um nome artístico. A minha cabeça brame com um sem fim de opções. Poderia ser algo com classe, como Estrelícia Davenport (a minha definição de classe soa a nome de actriz porno Venezuelano dos anos 80 está claro), descritivo como Luísa Marmota ou até artístico-bardajão como Candy Diaz. Um nome com impacto, uma peruca de três cores e enchimentos a dar-me as curvas certas, e eu seria capaz de dominar o mundo [ponto de reflexão: anos a ouvir marcas a anunciar push ups diminutos, como a grande inovação, após a invenção do pão de forma, e agora descubro que há todo um mercado de almofadados corporais que podiam ter-me ajudado a fazer publicidade enganosa com muito mais engenho e cair sem me esfolar toda? Sinto-me defraudada].

Ser Drag Queen é uma prova de poder de homens, que têm a arte de enxovalhar o sexo feminino em áreas que lhes são designadas à nascença pela sociedade. Não só o fazem, como o fazem melhor que muitas de nós e nos fazem reflectir, em como queríamos ser bonitas como o Osvaldo. Chega de patriarcado Drag, que eu também quero!


sexta-feira, 15 de maio de 2020

Amor Incondicional

“Quero alguém que me ame incondicionalmente”. Aquela frase cliché, que todos parecem proferir levianamente quando alguém lhes pergunta o que buscam num parceiro. Ao nível de muitas frases idiomáticas, como “Pensar na morte da bezerra”, compreendemos o significado, mas, garantidamente, foi uma constatação formulada por alguém sob o efeito de estupefacientes.

Eu quero amar e ser amada condicionalmente! Quem diz que o seu amor não tem condições é porque é ingénuo ou não sabe amar. Sendo a principal condição, o respeito.  “Ah, mas o respeito está implícito no amor”, se este é o vosso pensamento, por favor enviem-me um email com a vossa morada que terei todo o gosto em deslocar-me ao vosso domicílio e esticar-vos uma lambada. Devia ser, mas não é.

Visualizem, acordar todos os dias com o rabo do vosso parceiro na vossa cara a expelir ventosidades pelo ânus, porque vos ama e não há nenhuma condição que impeça o seu sentido de humor podrido. Estar prestes a dar uma garfada num muito antecipado almoço e, o amor da nossa vida, decide fingir que é um gato, esticando em câmara lenta a sua mão em direcção ao nosso prato, olhando-vos fixamente, como se isso fosse impedir de vermos a direcção dos seus membros superiores, alcança o prato e dá-lhe patadinhas até que caia da mesa, sorri e come o seu bife, como se nada fosse, porque vos ama e não há nenhuma condição que o impeça de comportar-se, literalmente, como um animal. Imaginem estar na sala de estar, o puto começar a gritar que não quer comer as ervilhas e, a vossa cara metade, entre palavras ternas, projecta a criança janela fora como um frisbee, porque vos ama e não há nenhuma condição que impeça arremessar os vossos prodígios pela janela.

“Não sejas exagerada!”, podem pensar, mas sejam quais forem as vossas condições, todos as devíamos ter, e há um sem número de casais que se afundam nas expectativas de uma expressão desacertada. Descobrir que alguém me trai, é quando baste para agradecer pelos bons tempos vividos e dar-lhe a morada na Gronelândia para onde enviei todos os seus pertences. No dia em que um homem me tocar com um dedo que seja, eu vou sair de casa, entrar num concessionário, pedir para fazer um test drive ao maior carro que tenham e passar-lhe por cima. Como podem ver: condições! Porque a única pessoa a quem vou amar incondicionalmente, é a mim mesma.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Crime, Disse Ela

Entidade ao nível de um detective ou médico forense com um olhar clínico sem precedentes. A sua experiência ímpar garante que nenhuma pergunta é demasiado complexa, nenhum caso é demasiado violento e não há mistério algum impossível de resolver. Perante momentos gore, não pestaneja, tira apontamentos enquanto come fervorosamente pipocas. O reflexo do sexo feminino perante qualquer filme, livro ou história de crime contada no vão de escadas pela vizinha Ludovica.

Desde tenra idade a mulher mostra sinais de algum défice no campo da repugnância. Do ponto negro no nariz do namorado que ela sente ter que fazer explodir ou vai ter um ataque de ansiedade, ao assistir a séries de assassinos em série, avaliando as fotos dos defuntos como se fosse mudar a narrativa do episódio por descobrir algo novo naquele cadáver decomposto, nada a impressiona. Sabe-se lá donde vem este estômago de ferro. Pode ser que esteja relacionado com mensalmente sermos uma pinhata de resíduos grotescos, ou sei lá, sermos capazes de criar pestanas num embrião enquanto comemos torradas.

Se pensam que é uma casualidade que todas as livrarias tenham destacadas no centro a temática de crime e que a Netflix esteja a desenterrar a história de cada indivíduo que, em algum momento, matou um gato a grito, para fazer um documentário de dez episódios, enganam-se! As mulheres são grandes consumidoras da temática, pois gostam de resolver mistérios e lidar com problemáticas que parecem impossíveis de resolver. Metade das relações que uma mulher tem ao longo da vida, fundam-se na premissa de poder moldar aquele projecto de homem, em alguma coisa que se preze. Começam por tentar decifrar o mistério de determinado galã estar solteiro, sendo este, tão bem parecido; e, ao começar uma relação, acabam por lidar com as problemáticas, desencadeadas, entre outras coisas, pelo facto de ele ser um sociopata, ou dos pés lhe cheirarem a peúgas centrifugadas com cozido à portuguesa. Mas, como qualquer caso (de mau aproveitamento de tempo) criminal, chega a altura de encerrar o caso e arquivar o expediente daquele ser inanimado, a quem abanámos com um pau por algum tempo, a ver se mexia.

Poderiam intuir, então, que somos perigosas. Afinal de contas, alguém que faz um bailinho celebrativo por anunciarem outra temporada de Mind Hunters e vê cada episódio a um palmo do ecrã, pode ser que saiba o suficiente de assassinos em série para a vossa vida estar em risco. Não temam meus caros. Gostamos de estar informadas, porque, caso não saibam, historicamente, as mulheres têm uma tendência a ser o sexo lixado. Não fazemos intenções de sujar as mãos ao desbarato, mas se soubermos as manhas todas dos grandes cérebros do crime, estamos um passo mais perto de nos defendermos e matar o coronel mostarda, na biblioteca, com um candelabro, do que se ficarmos quietas a ver se chove (vá...isso...e somos um bocado sádicas).

sábado, 9 de maio de 2020

Tradição Analógica

Há tradições familiares que pela força dos tempos se destroem para sempre. Como os belos fins de tarde a queimar bruxas na praça, há 400 anos, ou ir às sextas feiras buscar filmes ao clube de vídeo, há mais anos do que gostaria de admitir. Hoje pretendo falar da última, uma simples acção que concentrava uma amálgama de emoções ímpar.

Antecipação.

Caia a noite e rumávamos em família ao clube de vídeo. O cérebro em pleno festim matemático, a vida ensinava-nos estatística e avaliação sociológica desde pequenos. Era fundamental ter controlado em que dia sairia cada filme, calcular uma média de dez cópias disponíveis para alugar (se fosse um filme muito antecipado pelas massas), avaliar a probabilidade de dez pessoas do bairro quererem vê-lo e, acima de tudo, estudar a velocidade média de cada vizinho a chegar ao ponto de extracção. Olho com repulsa os petizes que se queixam dos 5 segundos que um vídeo demora a carregar. Estes nunca compreenderão a frustração de antecipar ver um filme, esperar quase um ano para que saia do cinema e seja disponibilizado em cassete, não conseguir uma das cópias no dia do lançamento, ter que esperar dois dias para que algum bom samaritano devolva o vídeo e rezar termos o timing perfeito, para o conseguir na primeira devolução.

Adrenalina.

Havia uma tensão no ar demarcada por papelinhos com carinhas tristes que destacavam os filmes já alugados. Havia sempre aquele membro da família que sabíamos que devia ficar em casa pelo seu gosto antagónico e faria o processo ser um longo episódio de Shark Tank, em que cada membro da família tinha que defender a sua sugestão como se estivesse nela pendente um investimento milionário. A adrenalina de podermos levar a nossa adiante. Uma última caixa sem papel, uma família unida pelo desejo de o alugar, o primo estúpido que certamente foi adoptado (não por ser estúpido, mas por ser ruivo), a insistir num filme independente que parecia um porno, 20 minutos a discutir a berros e a vizinha Clotilde que entretanto chegou e decidiu contar o final de três filmes, sem que ninguém lhe perguntara. Um cliente entra, os seus passos ecoam, vai directo ao balcão e pede o filme! O nosso filme! O dono da loja, pesaroso, aproxima-se de nós e coloca na caixa que eu agarrava fervorosamente, um papelinho. Era demasiado tarde. Os meus joelhos sucumbiam à pressão e caia.

Culpa.

Era hora de levar a segunda opção para casa. A que só o primo estúpido queria (afinal não era um porno). Ninguém abdicava de marcadas feições contrariadas e cenhos franzidos. Ele sentiria culpa se não fosse estúpido, mas nós, sentíamos por o ter deixado levar a dele a cabo.

Orgulho.

O filme poderia ser excepcional, mas não o poderíamos admitir. A batalha que havia arrebatado o nosso orgulho, ainda era recente. Fosse como fosse, residia nessa cassete um investimento económico e emocional. Que não ocorresse a ninguém perder um só momento do filme. Ir à casa de banho ou à cozinha buscar um petisco era uma acção colectiva, com momento a ser estipulado pela matriarca. Se o patriarca adormecesse durante o filme, entoando um ressonar tenor, seria submetido à expulsão da sala, mas, não antes de lidar com a cara de desilusão e olhar de raiva de todos.

Ódio.

Toda a fluidez do funcionamento dos clubes de vídeos residia numa colaboração colectiva entre vizinhos. Mas, todos os bairros tinham um par de exemplares da mais pura escória da sociedade, que não respeitava os dois dias de entrega, sem medo das repercussões e ficavam com os vídeos, por vezes, mais de uma semana. Em nossa casa, determinávamos quem iria devolver o filme assim que o alugávamos, teria de ser uma acção precisa e sem falhos, como o desactivar de uma bomba. Sendo a bomba a minha mãe quando descobrisse que teria de pagar a multa por devolução atrasada. Mais nos valia ir vender um rim, para conseguir o dinheiro e ela nunca descobrir.

Compaixão.

A única alternativa era apelar à compaixão do dono da loja. Prometer a nossa fidelidade, independentemente da quantidade de vídeo clubes que abrissem no bairro, assinar a sangue tais intenções, sacrificar uma cabra numa noite de lua cheia e oferecer o nosso filho primogénito para repositor (eu fiquei a dever-lhe três fedelhos para repositores, menos mal que fechou). Assim, podia ser que, secretamente, rompesse a confidencialidade dono-de-clube-de-vídeo/cliente e nos dissesse quando teria o vizinho de vir a entregar o vídeo ou, melhor, nos guardasse uma das cópias quando fosse devolvida.

Perda.

A cada lua cheia, na acção social de rebobinar a cassete, o leitor de vídeo regurgitava fita negra. Era enfiar os dedos nos orifícios da cassete e rodá-la como se a nossa vida dependesse disso. O pânico, o horror, de ter de pagar por um filme que não era bom e que, possivelmente, só serviria como adorno de árvore de natal.

Mas a principal perda é que fecharam. Para sempre. As novas gerações nunca vão compreender depender de um parágrafo para avaliar se um filme seria bom ou mau. Executar uma leitura analítica e literária do título. Avaliar aquelas três micro-imagens na parte de trás da capa (o trailer da altura). Estudar a capa até ao mais ínfimo detalhe, imaginando de que raio se trataria o filme.

Saudosista? Quiçá. Mas adorava esta tradição. Hoje tudo é fácil, o trailer conta quase a história toda, vemos a avaliação no imdb e determinamos se merece o nosso tempo, a família raramente se reúne para ver filmes, se não gostamos do enredo aos cinco minutos paramos e vemos outro. 

Enfim…mudam-se os tempos, mudam-se os filmes.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Não Sabem o Que Perdem

“E vocês, para quando?”

A pergunta que todas as mulheres grávidas projectam, como uma bola de ténis, à cana do nariz das amigas que estão em relações longas, mas ainda não decidiram reproduzir os seus genes duvidosos. A dádiva da vida é algo fabuloso. Também fabuloso, é que mais futuras mães não levem cabeçadas quando proclamam esta pergunta com um tom carregado de julgamento.

Casa comprada, marido imaculado, emprego de sonho. Os objectivos base que, enquanto crianças, estabelecemos como garantidos antes aos 23 anos de idade, quanto muito. Vemos as princesas da Disney a amanharem-se com homens com património imobiliário (um fabuloso castelo, ou no caso do Simba, “tudo o que a luz alcança”, hoje em dia as imobiliárias já não medem as coisas assim, é uma pena), isto, antes dos 18 anos de idade e, no benefício da dúvida, proporcionamo-nos mais cinco anos, não vá a puberdade ser mais lenta que desejado. Soubesse a pequena Eu de dez anos de idade, que passaria dos trinta e ainda estaria a patinar em maionese existencial, teria tentado trepar de regresso ao conforto do útero da minha mãe.

As minhas amigas já vão pelo segundo e terceiro petiz, dando-se ao luxo de arruinar a vida de ao menos um deles com um nome que lhe vai proporcionar uma carga de porrada diária desde a creche. O nascimento de um novo ser é um milagre. Deposito toda a minha fé nas capacidades reprodutoras dos demais, para criar gerações que não estejam repletas de fedelhos mal-educados, mas eu acho que o meu relógio biológico veio sem pilha de fábrica. Eu assassino um cacto em menos de uma semana, seria imprudente procriar. Estou quanto muito a zelar pelo bem-estar dos vossos futuros filhos, porque filho meu aos 3 anos já saberia usar nunchucks melhor que o Bruce Lee.

Não nos prendamos aos cânones impostos pela sociedade, desfrutem das vossas decisões e sejam plenamente felizes com elas, independentemente, do que as pessoas que vos rodeiam estão a fazer. O vestido rodado da Cátia Vanessa não tem porque vos ficar bem, nem tão pouco a sua vida.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Cultura de Merda

“De Espanha nem bons ventos, nem bons casamentos”, entoou a minha avó sussurrando, como apelo ao meu bom senso ao despedir-se de mim, faz mais de cinco anos, quando embarcava o voo que me levou para a terra de nuestros hermanos. Ri-me, trocista, como se isso alguma vez fosse suceder. Eu, moi-même, a sucumbir aos encantos de um ser aciganado, vendedor de caramelos, carregado de brilhantina no cabelo, sentado num carro a diesel barato e com uma mãe dançarina de flamenco, carregada de maquilhagem, uma verruga à esquerda do lábio e uma flor do tamanho de um repolho na cabeça (se me faltou algum estereótipo peço desculpa, esforçar-me-ei mais para a próxima).

Arranjei então um namorado catalão. O que faz dele o pão de passas do território espanhol, não é bom para besuntar na molhanga de um bife, mas também não serve de sobremesa. É o “nem chove, nem molha” da metáfora padeira.

Há todo um processo de aprendizagem de ambas as partes para uma relação multicultural saudável. Eu ensino-o a comer pão com manteiga, não vá um dia a minha saúde estar débil e, ao pedir-lhe uma torrada, ele apareça com um pão besuntado com azeite e um tomate esborrachado no meio (era eu doente a um canto e ele morto no outro). Ensino-o que quando apresentada uma descomunal embriaguez, o procedimento essencial, aconselhado pelo Ministério da Saúde, é entupir-nos de caldo verde e pão com chouriço. Não churros com chocolate, que isto não é uma ida à feira de Matosinhos com os pequenos. Sou mediadora de debates e dou palestras a ele e aos seus familiares em como não há um monopólio de comércio de toalhas em Portugal e asseguro que as mulheres portuguesas não têm todas bigodes (ter temos, mas vá…).

Ele, por outro lado, ensina-me toda a sua cultura de merda. Não... Não estou a difamar a sua cultura, eles fazem isso sozinhos, eu só estou a constatar factos. Nós temos o Zé Povinho e eles o Caganer, agora ponderam vocês, “com tal denominação, de que se poderá tratar?”. Pois, caro leitor, trata-se de um personagem, que eles colocam no presépio, tipicamente de traje campesino, a defecar. Andam os três reis magos a dar voltas ao que oferecer ao salvador recém-nascido e, vem o camponês catalão, arrear o presente atrás da vaca do presépio. Ambas as culturas têm, então, pequenas estátuas de personagens, potencialmente ofensivas aos olhos de outras culturas. Os catalães, acharam então por bem, não ficar empatados connosco. Como o natal não tinha já problemas suficientes com os clássicos dilemas familiares e um campesino incontinente a invadir o presépio, criaram o Caga Tio. Este, resumidamente, é um pau, aconchegado numa manta, esboçando um sorriso agradável, olhos melosos e com um chapéuzinho como o do Caganer, ao qual os petizes enchem à paulada com outro pau (este sem olhos), na esperança de que o primeiro defeque chocolates. Ora que boa ideia! Ah! Mas têm de cantar ao mesmo tempo (qual ritual satânico).

Quando eu pensava que a Catalunha havia compactado todas as possibilidades de traumatizar novas gerações em duas personagens, eis que me é apresentado o seu equivalente ao nosso São Martinho. Quando era pequena, saltava alegremente sobre a fogueira, entoando cânticos joviais sobre as castanhas que iríamos comer em seguida. Eles vestem-se de doentes mentais, criam uma figura gigante de um louco e ateiam-lhe fogo com gasolina. É…! Eu com seis anos comia cola e os catalães aprendiam a ocultar um homicídio por acção do fogo.

Gosto de acreditar que ensinamos às nossas crianças bons costumes, mas tenho que dar o braço a torcer que se me tivessem ensinado que se andasse à paulada recebia doces, que defecar é considerado um acto religioso e que caso me depare com alguém louco lhe posso atear fogo e resolver o problema, o meu trajecto de vida tinha sido consideravelmente mais fácil.


sexta-feira, 1 de maio de 2020

Intervenção de Hemisférios

Caro Hemisfério Cerebral Direito,

Temo que isto da quarentena nos esteja a escapar das mãos. Temos de ver a situação com objectividade e eu sei que para ti isso é difícil. És o lado hippie do cérebro, muito útil para coisas como, sei lá, pintar quadros e ver relva crescer, mas não és o mais esperto dos hemisférios, sou eu, ponhamos assim a coisa. Hoje voltou a chuva e acho que isso escaqueirou por completo a nossa humana. Anda por casa enrolada numa manta, parece o resultado de um romance furtivo entre um padre e um taco, já para não falar, dos comportamentos de cão farejador à procura de comida processada. Ontem comeu uma bolacha que encontrou no sofá. Não temos bolachas em casa há meses.

Eu sei que volta e meia temos feito o esforço de a convencer e ser saudável, mas temos de ser mais consistentes. Não posso ser sempre eu a bombardeá-la com estatísticas mentais de quanto tempo vai demorar para perder o peso, enquanto tu, a fazes sonhar com donuts de tutu, que vivem em granjas de pizza e vivem atormentados por repolhos psicóticos (acho que tens um aneurisma para esses lados, temos que ver isso, isto não é normal nem sob o efeito de estupefacientes). A última intervenção foi um investimento de 162 horas, em colaboração com os anúncios do Instagram que eram só de gente saudável e tudo para quê? Para fazer uma flexão e dar-lhe fome. Passámos de três refeições diárias a sete, com lanchinhos pelo meio e nutella por intravenosa.

Já pedi ajuda ao coração, mas ele é um inútil que passa a vida a patinar na maionese. Os outros músculos foram internados nos cuidados intensivos internos por falta de uso. Ela leva dois dias a atirar-se da cadeira para cima do aspirador inteligente a ver se este tem potência para a arrastar até à cozinha. A nossa humana parece uma alforreca fora de água, não se mexe e dá uma mistura de repulsão e pena a quem olha para ela. Sinto que um destes dias alguém lhe vai dar com um pau. 

Ela não é má pessoa, mas tem a força de vontade de uma batata. Continua a convencer-se que quando a quarentena acabar vai alimentar-se a alface e fotossíntese, para compensar, e que irá ao ginásio sete dias por semana. Ou já não sabe quantos dias há numa semana ou está demente.

Peço-te, então, que unamos forças por uma última tentativa de salvar este corpo, porque os transplantes cerebrais ainda não são um sucesso e eu não tenho talento para ver tinta secar como tu. Convence-a que é boa em ioga, que não dança como uma palhaça e que a paragem respiratória de que sofreu a última vez que correu (para o frigorífico), foi um caso isolado derivado do clima. Juntos vamos conseguir!

Espero ansiosamente a tua resposta.

Cordiais cumprimentos,

Hemisfério Esquerdo.