segunda-feira, 27 de abril de 2020

Nos Entrefolhos da Memória

Abril tem uma adaga cravada na minha memória, cheia de dor e ressentimento. Foi em Abril, que numa Feira em Sevilha, perdi uma das minhas amigas nos entrefolhos do seu vestido, onde nunca mais foi avistada. Partilho com vós esta experiência traumática para que nunca tenham de passar pelo mesmo. Ocasionalmente, ocorre em casamentos, mas é, principalmente, uma problemática recorrente na Feira de Abril na Andaluzia e ninguém aborda o assunto com medo das represálias.

Com o pé do seu pai cravado nos costados e as suas quatro primas a puxar das cordas do corset, não podia deixar de admirar o tom rosado magnifico que a falta de oxigénio lhe havia proporcionado. Que inveja! A minha família são uns egoístas que nunca dispensaram tempo para me sufocar. Finalmente, estava dentro do seu magnifico vestido vermelho com pequenas bolas negras. Parecia a noiva de um bolo de casamento de um casal invisual, onde as cores haviam sido um claro acidente do pasteleiro, mas tinha bolas suficientes para se ler em braille e isso era o importante.  Estaria dentro desse vestido as próximas dez horas, aproximadamente, tudo o que comesse ou bebesse poderia ser o seu fim, pois, literalmente, não havia espaço para erros.

O seu pai levantou-a como uma viga de madeira para a encaixar a pés juntos dentro dos seus sapatos, visto que agachar-se não era uma opção. Estava claro que iria de boca ao chão em poucas horas, mas valeria a pena. Colocou os brincos de plástico de mola, que pareciam parte de uma máscara de Carnaval e, finalmente, ajudaram-na a colocar uma enorme flor, também esta de plástico, na cabeça (todo o meu respeito àquele pescoço com força sobrenatural). Uma parabólica disfarçada de rosa, que tapava todo o penteado em que havia trabalhado por horas, mas proporcionaria Sportv e os canais de cinema a todos na festa. Estava pronta! Com tanta coisa em cima que já nem se lhe via a cara, mas certamente estaria linda debaixo de todo aquele carnaval de folhos e pétalas mutantes.

Levávamos já umas horas de festa e ela implorou por ajuda para usar a casa de banho. Pedimos resistência, pois não seria humanamente possível voltar a enchouriçá-la com tamanha precisão, mas ela não podia aguentar mais. Éramos cinco num espaço diminuto, cada uma puxava por um lado do vestido e havia folhos por todo o lado, pareciam cada vez mais, não nos chegavam as mãos! O silêncio. Onde estava? Gritámos por ela, lançámos-lhe cordas, mas era demasiado tarde. Havia sido tragada por uma tradição antiquada, um mau gosto ímpar e o repolho que levava na cabeça apenas lhe serviu de âncora.

Aprendam com o sofrimento alheio. Com as mãos no coração agradeço que este ano não haja Feira de Abril.

17 comentários:

  1. Ó pá não sei se ria se chore.
    Beijinho

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    1. Rir é mais saudável, mas compreendo, a tristeza da história não deixa ninguém indiferente =P

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  2. «mas tinha bolas suficientes para se ler em braille e isso era o importante», não aguentei ahahah

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  3. Rendo-me, este permitiu que quase sufoca se de tanto rir. Parabens mesmo, que o isolamento social se prolongue porque esta a dar frutos. Bjao

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    1. Respira...felizmente não tens que vestir corsets, nem transportar antenas na cabeça...mas podes, quem sou eu para negar o sofrimento gratuito de alguém =P

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  5. Isso tudo? Vá lá, digam-me que não se passou nada!

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  6. Uma coisa é certa: Este ano não há feira ahahah

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  7. já me aconteceu perder uma polaca, mas nã foi em entrefolhos e ao fim de algumas horas encontrei-a... agradeço o aviso, evitarei entrefolhos...

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    1. Fico feliz que tenhas encontrado a polaca...ide com cuidado pelos entrefolhos no futuro =P

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  8. "Que inveja! A minha família são uns egoístas que nunca dispensaram tempo para me sufocar." - são frases como estas que me fazem vir a este blogue! :p

    Juízo...
    Beijinhos ****************

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    1. Pensei que vinhas pela minha personalidade fabulosa...mas vá...podes vir pelas frases familiares também xD
      Beijinhos!

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