segunda-feira, 25 de maio de 2020

Um Espirro Por Um Funeral

As crianças são criaturas inocentes, cheias de alegria e sonhos maiores que o mundo, cuja coordenação motora e raciocínio lógico nem sempre estão aliados, criando queixos esfolados, joelhos negros e egos destruídos. Considerando que sou um ser que, desde pequena, tropeço na chuva e escorrego no ar, cedo percebi que de pouco servia chegar a casa e queixar-me às entidades grisalhas. Por cada dedo que partisse, tinha de sucumbir à história em como a minha avó tinha partido os dois braços a estender a roupa num dia de verão em que fez demasiado vento. Lascar um dente era sinónimo de vê-la a sacar da placa e me a enfiar olho adentro (foi o começo da minha primeira conjuntivite, quase que ficava cega, mas não me queixei), para mostrar como não tinha nenhum e estava rija. Tudo aquilo do que se possam queixar até a uma certa idade, vai ser superado com esplendor por qualquer idoso. Isto, porque, vos levam cem anos de avanço, ou estão senis e acreditam que fizeram parte do império egípcio e andavam a carregar calhaus às costas para bel-prazer de César.

No dia em que sai de casa calculei que esta fase havia passado, sabendo que um dia seria eu a que arremessaria o seu olho de vidro à cabeça do meu neto insolente, quando ele se queixasse de ser míope. Porém, o descanso do guerreiro não passava de uma miragem. Não houve intervalo na fase do queixume e os meus pais nunca me alertaram com medo de que eu nunca saísse de casa. Arranjei um homem!

Os elementos do sexo masculino têm em si, durante toda a sua vida, algo de veterano de guerra sociopata com lepra sazonal. Eu caminho em casa como se de um pequeno pónei me tratasse, é só magia e confettis, nunca me dói nada. Não importa se uma doença se transmite por contacto físico, via respiratória ou voodoo, os homens apanham tudo por osmose. Não estou destinada a sentir o glamour de me doer um dedo, nem a alma, sem ter que meter compressas frias na alma de outro.

Infelizmente, tive algumas relações fugazes, mas intensas, com a minha retrete ao longo dos anos e as dores que tive, proporcionaram-me momentos de júbilo existencial, equivalentes ao senhor do filme América Proibida que come o lancil. Inúmeras vezes pensei vislumbrar a minha oportunidade de ouro. A personagem masculina aproxima-se como um cavaleiro alado, os meus olhos lacrimejam de emoção, agarra-me nas mãos com ternura, tosse duas vezes, cuspe para a pia e toma a decisão administrativa que vai morrer se não tomar soro nesse mesmo instante.

Esta é a história da reforma antecipada da minha esperança de poder queixar-me de dores. Agora compreendo porque é que não tenho memória da minha mãe doente, pois se ela espirrasse, lá teria de levar o meu pai às urgências.


18 comentários:

  1. Finalmente alguem que me compreenda.......

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  2. Eles 'morrem' várias vezes durante a vida. Não sabias? São como os gatos. :)))

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  3. Sim, sim, os homens são piegas :)))
    Boa semana

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    1. Há excepções, claro está! Mas não há constipação que não seja um tormento em toda a minha vida adulta xD
      Boa semana!

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  4. Tal e qual!!! O meu exemplo mais recente foi eu ter contagiado o Alfa por telefone a milhares de quilómetros de distância. Eu estava afónica e fui dar aulas, à pobre criatura doía-lhe a cabeça e meteu baixa. (https://mergulhosf.blogspot.com/2019/12/contagio.html?m=0)

    "Os elementos do sexo masculino têm em si, durante toda a sua vida, algo de veterano de guerra sociopata com lepra sazonal." - a melhor descrição de sempre

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    1. É lindo quando o poder do amor é tanto que lhes passamos germes à distância xD

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  5. Ai, adorei =)
    que bela descrição =D

    Beijocas

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  6. E não é que é mesmo assim? Estão sempre a morrer de alguma coisa :D:D

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  7. É verdade, mas como em tudo, não há regra sem excepção. Conheço um. Estóico. Calado e reservado. Preferia que se queixasse .

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    1. Uiiii...isso será caso de estudo, preserva bem essa excepção (e não lhe digas nada, pode que não saiba que é uma excepção...). E os que se queixam...são...tão...chatooooos!

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