Há tradições familiares que pela
força dos tempos se destroem para sempre. Como os belos fins de tarde a queimar
bruxas na praça, há 400 anos, ou ir às sextas feiras buscar filmes ao clube de vídeo, há mais anos do que gostaria de admitir. Hoje
pretendo falar da última, uma simples acção que concentrava uma amálgama de
emoções ímpar.
Antecipação.
Caia a noite e rumávamos em
família ao clube de vídeo. O cérebro em pleno festim matemático, a vida
ensinava-nos estatística e avaliação sociológica desde pequenos. Era
fundamental ter controlado em que dia sairia cada filme, calcular uma média de
dez cópias disponíveis para alugar (se fosse um filme muito antecipado pelas
massas), avaliar a probabilidade de dez pessoas do bairro quererem vê-lo e,
acima de tudo, estudar a velocidade média de cada vizinho a chegar ao ponto de extracção. Olho com repulsa os petizes que se queixam dos 5 segundos que um vídeo
demora a carregar. Estes nunca compreenderão a frustração de antecipar ver um
filme, esperar quase um ano para que saia do cinema e seja disponibilizado em cassete,
não conseguir uma das cópias no dia do lançamento, ter que esperar dois dias
para que algum bom samaritano devolva o vídeo e rezar termos o timing
perfeito, para o conseguir na primeira devolução.
Adrenalina.
Havia uma tensão no ar demarcada
por papelinhos com carinhas tristes que destacavam os filmes já alugados. Havia
sempre aquele membro da família que sabíamos que devia ficar em casa pelo seu
gosto antagónico e faria o processo ser um longo episódio de Shark Tank, em que
cada membro da família tinha que defender a sua sugestão como se estivesse nela
pendente um investimento milionário. A adrenalina de podermos levar a nossa
adiante. Uma última caixa sem papel, uma família unida pelo desejo de o alugar,
o primo estúpido que certamente foi adoptado (não por ser estúpido, mas por ser
ruivo), a insistir num filme independente que parecia um porno, 20 minutos a
discutir a berros e a vizinha Clotilde que entretanto chegou e decidiu contar o
final de três filmes, sem que ninguém lhe perguntara. Um cliente entra, os seus
passos ecoam, vai directo ao balcão e pede o filme! O nosso filme! O dono da
loja, pesaroso, aproxima-se de nós e coloca na caixa que eu agarrava
fervorosamente, um papelinho. Era demasiado tarde. Os meus joelhos sucumbiam à
pressão e caia.
Culpa.
Era hora de levar a segunda opção
para casa. A que só o primo estúpido queria (afinal não era um porno). Ninguém
abdicava de marcadas feições contrariadas e cenhos franzidos. Ele sentiria
culpa se não fosse estúpido, mas nós, sentíamos por o ter deixado levar a dele
a cabo.
Orgulho.
O filme poderia ser excepcional, mas
não o poderíamos admitir. A batalha que havia arrebatado o nosso orgulho, ainda
era recente. Fosse como fosse, residia nessa cassete um investimento económico
e emocional. Que não ocorresse a ninguém perder um só momento do filme. Ir à
casa de banho ou à cozinha buscar um petisco era uma acção colectiva, com
momento a ser estipulado pela matriarca. Se o patriarca adormecesse durante o filme,
entoando um ressonar tenor, seria submetido à expulsão da sala, mas, não antes de lidar com a
cara de desilusão e olhar de raiva de todos.
Ódio.
Toda a fluidez do funcionamento dos clubes
de vídeos residia numa colaboração colectiva entre vizinhos. Mas, todos os bairros tinham um par de exemplares da mais pura escória da
sociedade, que não respeitava os dois dias de entrega, sem medo das repercussões e
ficavam com os vídeos, por vezes, mais de uma semana. Em nossa casa,
determinávamos quem iria devolver o filme assim que o alugávamos, teria de ser uma
acção precisa e sem falhos, como o desactivar de uma bomba. Sendo a bomba a minha
mãe quando descobrisse que teria de pagar a multa por devolução atrasada.
Mais nos valia ir vender um rim, para conseguir o dinheiro e ela nunca
descobrir.
Compaixão.
A única alternativa era apelar à
compaixão do dono da loja. Prometer a nossa fidelidade, independentemente da quantidade
de vídeo clubes que abrissem no bairro, assinar a sangue tais intenções,
sacrificar uma cabra numa noite de lua cheia e oferecer o nosso filho
primogénito para repositor (eu fiquei a dever-lhe três fedelhos para
repositores, menos mal que fechou). Assim, podia ser que, secretamente,
rompesse a confidencialidade dono-de-clube-de-vídeo/cliente e nos dissesse
quando teria o vizinho de vir a entregar o vídeo ou, melhor, nos guardasse uma das cópias
quando fosse devolvida.
Perda.
A cada lua cheia, na acção social de rebobinar a cassete, o leitor de vídeo regurgitava fita negra. Era enfiar os dedos nos
orifícios da cassete e rodá-la como se a nossa vida dependesse disso. O pânico,
o horror, de ter de pagar por um filme que não era bom e que, possivelmente, só serviria como adorno de árvore de natal.
Mas a principal perda é que fecharam.
Para sempre. As novas gerações nunca vão compreender depender de um parágrafo
para avaliar se um filme seria bom ou mau. Executar uma leitura analítica e
literária do título. Avaliar aquelas três micro-imagens na parte de trás da capa
(o trailer da altura). Estudar a capa até ao mais ínfimo detalhe, imaginando de
que raio se trataria o filme.
Saudosista? Quiçá. Mas adorava esta tradição. Hoje tudo é fácil, o trailer conta quase a história toda, vemos a avaliação no imdb e determinamos se merece o nosso tempo, a família raramente se reúne para ver filmes, se não gostamos do enredo aos cinco minutos paramos e vemos outro.
Enfim…mudam-se os tempos, mudam-se os filmes.
Há tradições que se colam à nossa pele. Por muito que, em determinados momentos, nos tenham tirado do sério ahah :D
ResponderEliminarSim na altura podiam ter algum senão...mas era tão bom...! Sinto que hoje estou a perder muitos filmes bons da quantidade absurda que aparece e ao mesmo tempo. Enfim...
EliminarQue saudades de ir alugar filmes! Lembro-me de ir a um club perto da estação dos comboios com a minha mãe, agora já nada existe, basta uns clicks e ligar a netflix ahah
ResponderEliminarO meu antigo clube de video hoje é uma lavandaria self service...o meu problema com a netflix é que acabo sempre a ver coisas de qualidade duvidosa, pela preguiça/sugestões parvas que aquilo faz xD. Viste um filme de homicídios? Aqui tens a peppa the pig --'
EliminarXiiiii que coisa te lembraste!! A ansiedade e expectativa com que entravamos nos video clubes, direitinhos ao local onde supostamente estaria o dito. Na maioria das vezes, já lá não estava nada, mas íamos sempre perguntar com os olhinhos muito abertos e a fazer figas para que alguém, entretanto e nas nossas costas, tivesse devolvido o bendito filme. Quando assim era(muito raro) vínhamos, todos contentes, voando para casa para uma nova sessão. Ai que xaudades!! :))
ResponderEliminarHavia maratonas de filmes lá em casa sempre que apanhávamos aquelas promoções de leva dois e paga um se entregas em 24h, vi tantoooo filme duvidoso, mas a verdade é que era uma critica de cinema, não me escapava nada xD
EliminarEu fiz isso! Ia com uma das minhas irmãs mas normalmente tínhamos sorte, ela queria o filme que acabara de sair e íamos buscá-lo e eu queria uma comédia romântica (seria a prima ruiva se fosse prima ou ruiva) mas trazíamos os dois:)
ResponderEliminarSortudaaaa!! Eu sentia-me uma sommelier de filmes, só me faltava cheirar as caixas para avaliar se o filme era de qualidade xD. Bons tempos!
EliminarRealmente a ida ao vídeo-clube parece ter acontecido noutra vida. Agora é que me estou a lembrar que nós tínhamos de ver os filmes alugados em casa da minha avó, porque lá em casa o nosso vídeo era betamax... e os filmes VHS.
ResponderEliminarA carga de trabalhos que tinhamos para ver um filme...mas valia apena! Mas nós vivemos em dois tempos totalmente opostos tecnologicamente, pouca gente compreenderá o que a nossa geração viveu.
EliminarTambém me lembro de ir alugar filmes aos video-clube. Tiveram o seu tempo. Tudo mudo, tudo se modifica.
ResponderEliminar.
Um domingo de amor, paz e bem
Cuide-se
Boas memórias.
EliminarUma boa semana Ricardo =)
Imagine quando tinha o vício do vídeo e um amigo abriu um clube de vídeo.
ResponderEliminarAinda há na casa em Coimbra inúmeros filmes que gravei naquela época.
Boa semana
Ui um amigo com clube de video, que perigo xD.
EliminarA altura em que os próprios clubes de video já vendiam dvds virgens para que as pessoas pudessem gravar os filmes em casa...já se sentia a mudança ai =P
Saudades desses tempos, agora por aqui já nem há clubes de vídeo :(
ResponderEliminarJá nem leitores de dvd quanto mais =(
EliminarTodo um culto que desapareceu à distância de um click... -.-
ResponderEliminarEu quero o meu culto de volta!!
EliminarDo que te foste lembrar!!!
ResponderEliminarQuando a malta ia ao sábado à tarde alugar um filme para ver ao serão, era um festival do catano 😁😁
Era tão bom!! Ando uma saudosista perdida =P
EliminarFizeste-me regressar aos tempos e ao ritual das sextas-feiras. Curiosamente, já nesse tempo existia uma espécie de saudosismo dos tempos não muito distantes em que o ritual era sair de casa e ir mesmo a um cinema ver um filme, pois ainda não tinham inventado a moda de ir ao cinema para comer um balde de pipocas e beber um barril de Coca-Cola.
ResponderEliminarEu lembro-me ainda de ir ver o filme ao anfiteatro da zona...o único disponível e ali ficava um par de meses antes do próximo estrear...
EliminarMas tenho que confessar que a inovação das pipocas foi agradecida =P