sábado, 9 de maio de 2020

Tradição Analógica

Há tradições familiares que pela força dos tempos se destroem para sempre. Como os belos fins de tarde a queimar bruxas na praça, há 400 anos, ou ir às sextas feiras buscar filmes ao clube de vídeo, há mais anos do que gostaria de admitir. Hoje pretendo falar da última, uma simples acção que concentrava uma amálgama de emoções ímpar.

Antecipação.

Caia a noite e rumávamos em família ao clube de vídeo. O cérebro em pleno festim matemático, a vida ensinava-nos estatística e avaliação sociológica desde pequenos. Era fundamental ter controlado em que dia sairia cada filme, calcular uma média de dez cópias disponíveis para alugar (se fosse um filme muito antecipado pelas massas), avaliar a probabilidade de dez pessoas do bairro quererem vê-lo e, acima de tudo, estudar a velocidade média de cada vizinho a chegar ao ponto de extracção. Olho com repulsa os petizes que se queixam dos 5 segundos que um vídeo demora a carregar. Estes nunca compreenderão a frustração de antecipar ver um filme, esperar quase um ano para que saia do cinema e seja disponibilizado em cassete, não conseguir uma das cópias no dia do lançamento, ter que esperar dois dias para que algum bom samaritano devolva o vídeo e rezar termos o timing perfeito, para o conseguir na primeira devolução.

Adrenalina.

Havia uma tensão no ar demarcada por papelinhos com carinhas tristes que destacavam os filmes já alugados. Havia sempre aquele membro da família que sabíamos que devia ficar em casa pelo seu gosto antagónico e faria o processo ser um longo episódio de Shark Tank, em que cada membro da família tinha que defender a sua sugestão como se estivesse nela pendente um investimento milionário. A adrenalina de podermos levar a nossa adiante. Uma última caixa sem papel, uma família unida pelo desejo de o alugar, o primo estúpido que certamente foi adoptado (não por ser estúpido, mas por ser ruivo), a insistir num filme independente que parecia um porno, 20 minutos a discutir a berros e a vizinha Clotilde que entretanto chegou e decidiu contar o final de três filmes, sem que ninguém lhe perguntara. Um cliente entra, os seus passos ecoam, vai directo ao balcão e pede o filme! O nosso filme! O dono da loja, pesaroso, aproxima-se de nós e coloca na caixa que eu agarrava fervorosamente, um papelinho. Era demasiado tarde. Os meus joelhos sucumbiam à pressão e caia.

Culpa.

Era hora de levar a segunda opção para casa. A que só o primo estúpido queria (afinal não era um porno). Ninguém abdicava de marcadas feições contrariadas e cenhos franzidos. Ele sentiria culpa se não fosse estúpido, mas nós, sentíamos por o ter deixado levar a dele a cabo.

Orgulho.

O filme poderia ser excepcional, mas não o poderíamos admitir. A batalha que havia arrebatado o nosso orgulho, ainda era recente. Fosse como fosse, residia nessa cassete um investimento económico e emocional. Que não ocorresse a ninguém perder um só momento do filme. Ir à casa de banho ou à cozinha buscar um petisco era uma acção colectiva, com momento a ser estipulado pela matriarca. Se o patriarca adormecesse durante o filme, entoando um ressonar tenor, seria submetido à expulsão da sala, mas, não antes de lidar com a cara de desilusão e olhar de raiva de todos.

Ódio.

Toda a fluidez do funcionamento dos clubes de vídeos residia numa colaboração colectiva entre vizinhos. Mas, todos os bairros tinham um par de exemplares da mais pura escória da sociedade, que não respeitava os dois dias de entrega, sem medo das repercussões e ficavam com os vídeos, por vezes, mais de uma semana. Em nossa casa, determinávamos quem iria devolver o filme assim que o alugávamos, teria de ser uma acção precisa e sem falhos, como o desactivar de uma bomba. Sendo a bomba a minha mãe quando descobrisse que teria de pagar a multa por devolução atrasada. Mais nos valia ir vender um rim, para conseguir o dinheiro e ela nunca descobrir.

Compaixão.

A única alternativa era apelar à compaixão do dono da loja. Prometer a nossa fidelidade, independentemente da quantidade de vídeo clubes que abrissem no bairro, assinar a sangue tais intenções, sacrificar uma cabra numa noite de lua cheia e oferecer o nosso filho primogénito para repositor (eu fiquei a dever-lhe três fedelhos para repositores, menos mal que fechou). Assim, podia ser que, secretamente, rompesse a confidencialidade dono-de-clube-de-vídeo/cliente e nos dissesse quando teria o vizinho de vir a entregar o vídeo ou, melhor, nos guardasse uma das cópias quando fosse devolvida.

Perda.

A cada lua cheia, na acção social de rebobinar a cassete, o leitor de vídeo regurgitava fita negra. Era enfiar os dedos nos orifícios da cassete e rodá-la como se a nossa vida dependesse disso. O pânico, o horror, de ter de pagar por um filme que não era bom e que, possivelmente, só serviria como adorno de árvore de natal.

Mas a principal perda é que fecharam. Para sempre. As novas gerações nunca vão compreender depender de um parágrafo para avaliar se um filme seria bom ou mau. Executar uma leitura analítica e literária do título. Avaliar aquelas três micro-imagens na parte de trás da capa (o trailer da altura). Estudar a capa até ao mais ínfimo detalhe, imaginando de que raio se trataria o filme.

Saudosista? Quiçá. Mas adorava esta tradição. Hoje tudo é fácil, o trailer conta quase a história toda, vemos a avaliação no imdb e determinamos se merece o nosso tempo, a família raramente se reúne para ver filmes, se não gostamos do enredo aos cinco minutos paramos e vemos outro. 

Enfim…mudam-se os tempos, mudam-se os filmes.

22 comentários:

  1. Há tradições que se colam à nossa pele. Por muito que, em determinados momentos, nos tenham tirado do sério ahah :D

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    1. Sim na altura podiam ter algum senão...mas era tão bom...! Sinto que hoje estou a perder muitos filmes bons da quantidade absurda que aparece e ao mesmo tempo. Enfim...

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  2. Que saudades de ir alugar filmes! Lembro-me de ir a um club perto da estação dos comboios com a minha mãe, agora já nada existe, basta uns clicks e ligar a netflix ahah

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    1. O meu antigo clube de video hoje é uma lavandaria self service...o meu problema com a netflix é que acabo sempre a ver coisas de qualidade duvidosa, pela preguiça/sugestões parvas que aquilo faz xD. Viste um filme de homicídios? Aqui tens a peppa the pig --'

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  3. Xiiiii que coisa te lembraste!! A ansiedade e expectativa com que entravamos nos video clubes, direitinhos ao local onde supostamente estaria o dito. Na maioria das vezes, já lá não estava nada, mas íamos sempre perguntar com os olhinhos muito abertos e a fazer figas para que alguém, entretanto e nas nossas costas, tivesse devolvido o bendito filme. Quando assim era(muito raro) vínhamos, todos contentes, voando para casa para uma nova sessão. Ai que xaudades!! :))

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    1. Havia maratonas de filmes lá em casa sempre que apanhávamos aquelas promoções de leva dois e paga um se entregas em 24h, vi tantoooo filme duvidoso, mas a verdade é que era uma critica de cinema, não me escapava nada xD

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  4. Eu fiz isso! Ia com uma das minhas irmãs mas normalmente tínhamos sorte, ela queria o filme que acabara de sair e íamos buscá-lo e eu queria uma comédia romântica (seria a prima ruiva se fosse prima ou ruiva) mas trazíamos os dois:)

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    1. Sortudaaaa!! Eu sentia-me uma sommelier de filmes, só me faltava cheirar as caixas para avaliar se o filme era de qualidade xD. Bons tempos!

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  5. Realmente a ida ao vídeo-clube parece ter acontecido noutra vida. Agora é que me estou a lembrar que nós tínhamos de ver os filmes alugados em casa da minha avó, porque lá em casa o nosso vídeo era betamax... e os filmes VHS.

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    1. A carga de trabalhos que tinhamos para ver um filme...mas valia apena! Mas nós vivemos em dois tempos totalmente opostos tecnologicamente, pouca gente compreenderá o que a nossa geração viveu.

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  6. Também me lembro de ir alugar filmes aos video-clube. Tiveram o seu tempo. Tudo mudo, tudo se modifica.
    .
    Um domingo de amor, paz e bem
    Cuide-se

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  7. Imagine quando tinha o vício do vídeo e um amigo abriu um clube de vídeo.
    Ainda há na casa em Coimbra inúmeros filmes que gravei naquela época.
    Boa semana

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    1. Ui um amigo com clube de video, que perigo xD.
      A altura em que os próprios clubes de video já vendiam dvds virgens para que as pessoas pudessem gravar os filmes em casa...já se sentia a mudança ai =P

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  8. Saudades desses tempos, agora por aqui já nem há clubes de vídeo :(

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  9. Todo um culto que desapareceu à distância de um click... -.-

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  10. Do que te foste lembrar!!!
    Quando a malta ia ao sábado à tarde alugar um filme para ver ao serão, era um festival do catano 😁😁

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  11. Fizeste-me regressar aos tempos e ao ritual das sextas-feiras. Curiosamente, já nesse tempo existia uma espécie de saudosismo dos tempos não muito distantes em que o ritual era sair de casa e ir mesmo a um cinema ver um filme, pois ainda não tinham inventado a moda de ir ao cinema para comer um balde de pipocas e beber um barril de Coca-Cola.

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    1. Eu lembro-me ainda de ir ver o filme ao anfiteatro da zona...o único disponível e ali ficava um par de meses antes do próximo estrear...
      Mas tenho que confessar que a inovação das pipocas foi agradecida =P

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