segunda-feira, 4 de maio de 2020

Cultura de Merda

“De Espanha nem bons ventos, nem bons casamentos”, entoou a minha avó sussurrando, como apelo ao meu bom senso ao despedir-se de mim, faz mais de cinco anos, quando embarcava o voo que me levou para a terra de nuestros hermanos. Ri-me, trocista, como se isso alguma vez fosse suceder. Eu, moi-même, a sucumbir aos encantos de um ser aciganado, vendedor de caramelos, carregado de brilhantina no cabelo, sentado num carro a diesel barato e com uma mãe dançarina de flamenco, carregada de maquilhagem, uma verruga à esquerda do lábio e uma flor do tamanho de um repolho na cabeça (se me faltou algum estereótipo peço desculpa, esforçar-me-ei mais para a próxima).

Arranjei então um namorado catalão. O que faz dele o pão de passas do território espanhol, não é bom para besuntar na molhanga de um bife, mas também não serve de sobremesa. É o “nem chove, nem molha” da metáfora padeira.

Há todo um processo de aprendizagem de ambas as partes para uma relação multicultural saudável. Eu ensino-o a comer pão com manteiga, não vá um dia a minha saúde estar débil e, ao pedir-lhe uma torrada, ele apareça com um pão besuntado com azeite e um tomate esborrachado no meio (era eu doente a um canto e ele morto no outro). Ensino-o que quando apresentada uma descomunal embriaguez, o procedimento essencial, aconselhado pelo Ministério da Saúde, é entupir-nos de caldo verde e pão com chouriço. Não churros com chocolate, que isto não é uma ida à feira de Matosinhos com os pequenos. Sou mediadora de debates e dou palestras a ele e aos seus familiares em como não há um monopólio de comércio de toalhas em Portugal e asseguro que as mulheres portuguesas não têm todas bigodes (ter temos, mas vá…).

Ele, por outro lado, ensina-me toda a sua cultura de merda. Não... Não estou a difamar a sua cultura, eles fazem isso sozinhos, eu só estou a constatar factos. Nós temos o Zé Povinho e eles o Caganer, agora ponderam vocês, “com tal denominação, de que se poderá tratar?”. Pois, caro leitor, trata-se de um personagem, que eles colocam no presépio, tipicamente de traje campesino, a defecar. Andam os três reis magos a dar voltas ao que oferecer ao salvador recém-nascido e, vem o camponês catalão, arrear o presente atrás da vaca do presépio. Ambas as culturas têm, então, pequenas estátuas de personagens, potencialmente ofensivas aos olhos de outras culturas. Os catalães, acharam então por bem, não ficar empatados connosco. Como o natal não tinha já problemas suficientes com os clássicos dilemas familiares e um campesino incontinente a invadir o presépio, criaram o Caga Tio. Este, resumidamente, é um pau, aconchegado numa manta, esboçando um sorriso agradável, olhos melosos e com um chapéuzinho como o do Caganer, ao qual os petizes enchem à paulada com outro pau (este sem olhos), na esperança de que o primeiro defeque chocolates. Ora que boa ideia! Ah! Mas têm de cantar ao mesmo tempo (qual ritual satânico).

Quando eu pensava que a Catalunha havia compactado todas as possibilidades de traumatizar novas gerações em duas personagens, eis que me é apresentado o seu equivalente ao nosso São Martinho. Quando era pequena, saltava alegremente sobre a fogueira, entoando cânticos joviais sobre as castanhas que iríamos comer em seguida. Eles vestem-se de doentes mentais, criam uma figura gigante de um louco e ateiam-lhe fogo com gasolina. É…! Eu com seis anos comia cola e os catalães aprendiam a ocultar um homicídio por acção do fogo.

Gosto de acreditar que ensinamos às nossas crianças bons costumes, mas tenho que dar o braço a torcer que se me tivessem ensinado que se andasse à paulada recebia doces, que defecar é considerado um acto religioso e que caso me depare com alguém louco lhe posso atear fogo e resolver o problema, o meu trajecto de vida tinha sido consideravelmente mais fácil.


25 comentários:

  1. Será que anda por aí algum desespero existencial?

    Cupts
    Cuide-se

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    1. Ai Ricardo soubesse você! Toda eu sou desesperos existenciais xD

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  2. Estamos sempre a aprender :p
    «Não churros com chocolate, que isto não é uma ida à feira de Matosinhos com os pequenos» ahahah

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    1. Eu sou um poço de informação útil xD
      Boa semana Andreia!

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  3. :))) não fazia ideia e tenho um trisavô espanhol :)

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    1. Acho que todos temos um trisavô espanhol (ao menos acho que o meu era, mas ninguém tem bem a certeza xD)...e também tive que mudar de pais para aprender esta relíquia =P

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  4. Fiquei a pensar se são eles que não querem ficar atrás de nós, ou se fomos nós que não quisemos ficar atrás deles. Só que, os personagens deles são bem mais engraçados (pelo menos o do Natal é fantástico) :D

    Apareço-te com outra imagem. Faz parte de outro blogue que tenho. Perguntas: porquê 2? Pois! Apesar de haver uma razão, nem eu sei como cai nisto. :D :D

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    1. Sem dúvida, têm personagens com muito mais potencial que as nossas! xD...acho que em contexto nenhum da minha vida usei a personagem do zé povinho xD
      Ai milher eu quase que não consigo levar nem um blog...e tu levas dois? Haja coragem!

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  5. "(...)não é bom para besuntar na molhanga de um bife, mas também não serve de sobremesa." Muito bom! xD

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  6. Pode ser que já tenhas contado (parte d)este episódio na outra vida deste blogue? A história desses boneco não me é completamente estranha...

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    1. Calíope és a minha heroina!! Sim, é um facto, é um remake de um texto que tinha escrito há mais de 4 anos e publicado no meu antigo blog. Voltou a ser assunto aqui em casa e lembrei-me de reescreve-lo! Muito bom olho...e acima de tudo aquece-me o coraçãozinho ter conseguido marcar-te com esta tradição linda xD

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    2. :) Não era só o boneco, mas alguns pormenores do texto ficaram-me obviamente guardados na minha memória.

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  7. Esse Caganer deve ser jeitoso deve :D:D

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    1. Há para todos os gostos hoje em dia...hora ele é a Hello Kitty a defecar...o Trump...têm de tudo!

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  8. Oh pá, uma pessoa vem aqui pouco de pois de acordar e fica logo bem disposta :p
    Desconhecia algumas das informações que trouxeste com este post, uma pessoa só aprende ahah
    Boa semana :)

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    1. Sou o pior jornal informativo matinal do qual podias dispor xD
      Beijinho!

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  9. com aciganados nã corrias tantos riscos...

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  10. Esse campesinho deu cabo de mim ahahah
    R: Muito obrigada por me avisares, já descobri o que foi. Ativei uma opção que não devia enquanto andava nas descobertas aqui no blog ahah. Agora acho que já não terás problemas em comentar os meus posts :)

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  11. Aposto que, do lado de lá da fronteira, nos vêem com a mesma estranheza.

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    1. Sem dúvida...levo anos do outro lado da fronteira e também há tradições nossas que não fazem sentido nenhum para eles...mas essa é a beleza da coisa, é aprender com outras culturas e conseguir rir das coisas que sempre vimos como normais e correntes =D

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